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O centro não se sustenta

A vitória dos radicais na Europa e o retorno de Trump prenunciam tempos difíceis para o comércio global. No Brasil, o sucesso econômico do governo está em risco pela disputa entre bolsonarismo e petismo

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Marcos Strecker: "O mundo continuará refém da guerra fria entre os EUA e a China, em que as regras internacionais são desrespeitadas pelo interesse comercial dos dois gigantes econômicos" (Crédito: Divulgação)

Por Marcos Strecker

No poema A Segunda Vinda, de 1919, o poeta William Butler Yeats usa uma alegoria cristã para representar o perigo de dissolução do mundo no pós-Primeira Guerra. Esse famoso texto foi apropriado com maestria nos anos 1960 pela escritora Joan Didion (1934-2021), que na sua coleção de ensaios Rastejando até Belém usou a chave poética da obra do irlandês como título e reinterpretou a metáfora para descrever a falência do sonho de libertação pessoal na Califórnia dos anos 1960. Ao invés de produzir uma era de felicidade e amor, a utopia da contracultura tinha criado uma geração de iludidos miseráveis. O símbolo disso era um bebê mantido drogado pelos pais hippies em um cortiço em São Francisco.

O que isso tem a ver com os EUA e com o mundo atual? A sociedade americana está novamente em convulsão, mas isso é só parte do problema. O consenso global pós-Segunda Guerra, econômico e geopolítico, parece irremediavelmente comprometido pela ascensão do extremismo em todos os continentes. Nas eleições europeias do último dia 9, o centro político da Europa, composto por França e Alemanha, levou uma lavada da extrema-direita, que tenta desmontar o bloco econômico, reacender o populismo incendiário e perseguir imigrantes e minorias, usando-os como bode expiatório. No Reino Unido, o Partido Conservador vai amargar uma derrota histórica no dia 4 de julho.

Nos EUA, dez entre dez analistas já trabalham com o cenário em que Donald Trump vencerá em novembro. Ele já prometeu usar o governo para perseguir adversários, quer aprofundar a influência sobre a Suprema Corte e desmontar o famoso sistema de pesos e contrapesos que segura a democracia dos país há mais de 200 anos. Vai enfraquecer os laços com a Europa e aproximar-se de forma errática de ditadores que ameaçam a ordem global, começando por Vladimir Putin.

Na economia, Trump vai radicalizar ainda mais o protecionismo, enfraquecendo os órgãos multilaterais que tentavam integrar o resto do mundo à economia de mercado (como a OMC). Peter Navarro, atualmente preso mas que provavelmente vai liderar a política comercial trumpista, já anuncia uma nova era de barreiras alfandegárias, contra a própria tradição dos republicanos na defesa do livre comércio. Novos cortes de impostos para as empresas e os ricos também devem ampliar ainda mais o déficit público, pressionando a política monetária do país e os Bancos Centrais pelo planeta.

Para esse panorama que se avizinha, contribuiu o passo em falso do atual governo, apesar das boas intenções. O trilionário New Deal de Joe Biden trouxe uma bonança passageira para os empregos e as empresas, mas impulsionou o déficit e a inflação. Pior, não garantiu votos para o atual presidente. O bidenomics fracassou até entre os eleitores democratas. Pesquisas mostram que os americanos confiam mais em Trump do que em Biden na economia. O mundo continuará refém da guerra fria entre os EUA e a China, em que as regras internacionais são desrespeitadas pelo interesse comercial dos dois gigantes econômicos.

Cada vez mais fragilizado nos EUA e na Europa, o centro parece também patinar no Brasil. O presidente Lula teve a sabedoria de estabelecer uma frente ampla para se eleger, mas isso não garantiu um governo genuinamente de centro, nem enfraqueceu o bolsonarismo. Os maiores reflexos dessa desordem acontecem justamente na economia. O ministro Fernando Haddad tenta cumprir uma agenda macroeconômica de disciplina fiscal, respeitando a prioridade social do governo e valorizando as empresas e o mercado. A estratégia está fazendo água, como se viu pela enésima vez no xeque-mate imposto pelo Congresso com a devolução da MP do PIS/Cofins que tentava consertar um rombo fiscal aberto pelo próprio Legislativo.

Até hoje, o governo tinha o enorme benefício do sucesso econômico no primeiro ano de mandato, garantido pelo aumento surpreendente do PIB e expansão dos empregos, além da aprovação histórica da Reforma Tributária, que prometia finalmente destravar e modernizar a economia. Agora, até a regulamentação dos impostos parece comprometida. As tensões pela próxima mudança na cúpula do Congresso contaminam as tratativas. O pano de fundo é o embate que ainda resiste entre o bolsonarismo e o petismo, que virou central nas eleições municipais e já se desenha para a sucessão em 2026. O Brasil, assim, se alinha com a desordem mundial.

*MarcosStrecker é jornalista, diretor do Núcleo de Negócios da Editora Três (Istoé Dinheiro, Dinheiro Rural e Motor Show)