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Tempo de acumular, tempo de desapegar

Leilão de 2 mil peças, entre obras de arte, livros raros e objetos históricos colecionados por sete gerações da família do barão de Iguape é um convite para refletir sobre o que faz sentido guardar

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Celso Masson: no momento atual, ideia de apenas usufruir passou a se impor sobre a de possuir (Crédito: Divulgação)

O pintor argentino Juan Lecuona, que abriu uma exposição individual no sábado (17), na Galeria Ricardo Von Brusky, em São Paulo, me disse uma vez: “O que faço é absolutamente inútil”. Há décadas Lecuona é reconhecido internacionalmente por sua pintura. Quem o conhece sabe também que costuma fazer afirmações intempestivas, e neste caso ele não se referia a sua obra em particular e sim à pintura abstrata de maneira geral.

Para que serve um quadro não figurativo pendurado na parede? É inegável que arte pode nos emocionar, provocar sensações que não teríamos sem aquela visão e suscitar a pura fruição estética. É uma forma de transcender a realidade.

Como disse o influente crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900), “é a ausência de labuta que torna a coisa inútil”. Ainda que não seja um item de necessidade básica para a vida, a arte tem valor, e não apenas monetário.

Prova disso é a própria carreira de Lecuona. Representado por marchands em vários países, ele expõe e vende seus quadros a preços que permitem manter o estilo de vida que deseja sem enfrentar grandes pressões financeiras para isso.

O êxito nas vendas, confirmado no vernissage de sua individual paulistana, contradiz a ideia de que sua obra — assim como a de outros pintores e escultores — seja inútil.

Por mais de 150 anos a família Silva Prado colecionou arte. Foram sete gerações, desde o barão de Iguape (1778–1875) investindo parte de seus recursos na aquisição de obras valiosas.

Não apenas pinturas de nomes consagrados como Di Cavalcanti e Anita Malfatti mas também livros e objetos de decoração raríssimos. Entre eles a edição original, de 1647, do volume que Maurício de Nassau (1604-1679) encomendou ao holandês Caspar Barlaeus para retratar o Brasil de sua época.

A família possui ainda um relógio de parede construído pelo francês André-Charles Boulle, o marceneiro oficial do rei Luís 14. A peça tem parentesco direto com a que foi destruída nos atos de vandalismo de 8 janeiro deste ano em Brasília.

Pois a partir da segunda-feira (26) cerca de 2 mil peças acumuladas pela família Silva Prado serão leiloadas por iniciativa da herdeira Marjory Prado Misasi. Segundo ela, grande parte do conjunto foi formado por sua tetravó Veridiana Valéria da Silva Prado (1825-1910), que viveu por muitos anos em um palacete no bairro paulistano de Higienópolis, na rua que leva justamente o nome Dona Veridiana. “Era uma casa enorme onde cabiam todas as peças, mas hoje tenho uma vida bastante prática”, afirmou Marjory ao comentar suas motivações para a venda.

É uma decisão corajosa e também um sinal dos tempos. Primeiro por colocar fim a um hábito que perpassou a história da família desde o século 19. Segundo, por ser um ato raro de desapego.

“Ainda tenho muitas peças, principalmente de valor afetivo, mas acredito que leiloar boa parte desse acervo seja uma oportunidade para que se tenha acesso a elas”, disse Marjory.

Mesmo que fique com alguns itens selecionados por razões afetivas, ela se convenceu de que é o momento de não seguir guardando tanta coisa. Uma postura bem adequada ao momento atual, em que a ideia de apenas usufruir passou a se impor sobre a de possuir.

Parafraseando Hamlet, ter ou não ter, eis a questão. Marjory decidiu não mais ter tanto.

O desapego em relação aos bens que herdou lhe dá um papel na história bem diferente do que tiveram seus antepassados.

Além do barão de Iguape, da ilustre Dona Veridiana e do primeiro prefeito republicano de São Paulo, Antônio da Silva Prado, que em 11 anos no cargo deixou um legado de obras fundamentais para a cidade, a família teve ainda a figura de Antônio Prado Júnior (1880-1955), que participou da fundação do Jockey Club de São Paulo e do Club Athletico Paulistano, além de ter contribuído para criar, com Jules Rimet, o que viria a ser a Copa do Mundo de futebol.

Já narrada em livro (Cinco Antônios, Duas Cidades, de Margarida Cintra Gordinho), a saga dessa família ficará para sempre na história, independentemente de onde estejam os bens que ela reuniu.

Para que os 2 mil itens encontrem comprador, o leilão terá quatro noites, sempre às 20h, pelo site blomboleiloes.com.br. Parte da renda irá para a ONG The Friendship Circle Brasil. Um desapego com propósito.

*Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO