Elie Horn, da Cyrela, doa 60% de sua fortuna e revela lições da filantropia
Fundador da Cyrela, uma das maiores construtoras do Brasil, o bilionário Elie Horn lança livro de reflexões sobre sua trajetória, quer expandir o movimento de filantropia no País e defende a taxação dos super-ricos
Por Beto Silva
Impossível ficar indiferente a Elie Horn. A trajetória de vida pessoal, carreira profissional e suas ações na filantropia fizeram dele uma das figuras mais emblemáticas da história empresarial brasileira. O fundador da Cyrela, entre as maiores e mais importantes construtoras e incorporadoras do País, avaliada em R$ 7,6 bilhões, vai completar 80 anos no final deste mês. E segue ativo. Continua na presidência do Conselho de Administração da empresa, participa de reuniões e mostra os caminhos para obter melhores resultados – financeiros e sociais – à sua equipe. Mas sua principal atuação hoje é voltada a projetos sociais. À caridade.
Para traduzir essa sua missão, acaba de lançar um livro com suas iniciativas e reflexões intitulado Tijolos do Bem (Editora&Livraria Sêfer). Não se trata de uma biografia, apesar de abordar sua trajetória. É uma obra que enfatiza o que Horn faz no presente e o que pensa sobre o futuro. “O bem é a essência da vida. Se não fizermos o bem, nossa vida não tem sentido. É um dever contribuir em vida para o bem-estar do próximo”, disse o empresário em sua mansão no nobre bairro paulistano Cidade Jardim, no último dia 27, durante um petit comitê com jornalistas para divulgar o livro e falar sobre sua vida.
Com fortuna avaliada em R$ 3,1 bilhões, segundo a Forbes, ele foi o primeiro empresário do Brasil a ingressar, em 2015, no movimento americano The Giving Pledge (O Compromisso de Doação), fundado por Warren Buffett, Melinda French Gates e Bill Gates, que estimula indivíduos e famílias com grandes fortunas a doar a maior parte de seu patrimônio para a filantropia. Horn se comprometeu a doar em vida 60% de seu dinheiro, o que vem fazendo desde então.
Impossível também discorrer sobre o que faz e o que pensa Elie Horn sem abordar o que ele passou e o que ele construiu em oito décadas de ação e doação. Para traçar um perfil do homem que doa e se doa, é preciso voltar para o início do século passado. E citar Joe Dwek, avô materno de Horn, que fundou em Alepo (Síria) um orfanato por onde passaram 3 mil crianças sem pai nem mãe durante a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918). Essa foi a primeira história familiar que influenciou na formação e na personalidade de Horn.
Outro episódio familiar que contribuiu para o caráter do empresário ocorreu no início da década de 1950. Seu pai era dono de uma loja de tecidos no Líbano. Endividado, faliu. Oficiais de Justiça entraram em sua casa e levaram a maior parte dos móveis. “Uma das cenas mais tristes da minha vida”, relata Horn. “Volta e meia me lembro desse episódio e sofro. Foi um trauma que carrego dentro de mim, que criou marcas, algumas não superadas até hoje.”
• Depois disso, seus pais tentaram a vida na Itália e, em seguida, vieram para o Brasil, conhecido na época como o “País do Futuro” – expressão cunhada em 1941 pela obra de outro judeu que se estabeleceu por aqui, o austríaco Stefan Zweig.
• Em setembro de 1955, a família judaica tradicional sefaradita ortodoxa cruzou o Oceano Atlântico viajando de terceira classe em um navio. Foram duas semanas em uma cabine que mais parecia um porão lotado de pessoas.
• Após o desembarque no Porto de Santos, o destino foi a cidade de São Paulo. Na terra da garoa seu pai se reergueu, criou a família e doou para causas sociais, depois de falecer, 100% do que conquistou.
• Mais uma lição familiar sobre entrega. “Faça aquilo que ninguém faz e faça a diferença neste mundo”, escutava do pai. Horn levou a sério. Após o pai e o avô darem o exemplo e tornarem o ato de doar uma tradição, para ele isso virou uma obrigação.
O COMEÇO
• Aos 11 anos, o menino que nasceu em Alepo, na Síria, em julho de 1944, caçula de sete irmãos, começou a vender selos usados no Brasil, atividade que fazia também em sua terra natal.
• Um pouco mais tarde, trabalhou com seu irmão Joe vendendo goma laca e soda cáustica.
• Depois, atuou com tecelagem. Mas foi no ramo imobiliário que encontrou sua veia empreendedora. Comprava e vendia apartamentos.
Um ciclo que deu muito certo no início dos anos 1960, a partir de uma estratégia ousada. Eram 90 dias entre a compra e venda do imóvel, sincronizando o fluxo de caixa para que pagamentos e recebimentos ocorressem simultaneamente. Com o sucesso, Horn e seu irmão foram convidados para uma sociedade com o engenheiro Zolmen Rosenthal em uma administradora de condomínios e construtora. O nome da empresa: Cyrel. Algum tempo depois, Rosenthal saiu do negócio. E Horn acrescentou a letra “A” no final da denominação da companhia, que passou a se chamar Cyrela.
Os dez primeiros anos de Horn no setor imobiliário foram excepcionais. Aos 29 anos, acumulou “um patrimônio substancial”. Foi aí que começaram o que ele chama de “testes pessoais” sobre a missão de doar. No início, doações pontuais. Depois, mais estruturadas. Com envolvimento dos seus negócios, inclusive. “Negócios do bem”, como define Horn.
Um deles foi com Roberto Setúbal, ex-CEO e atual co-presidente do Conselho de Administração do Banco Itaú, que procurou Horn para negociar um apartamento em que iria morar com a família. Os dois discutiram o valor do imóvel e não chegaram a um acordo na primeira conversa. Foi preciso marcar uma nova reunião para continuar a negociação. Com a persistência do impasse, o fundador da Cyrela propôs um pacto. “Pague-me o quanto você quiser, e a diferença do valor do imóvel doe para a caridade, para uma causa de sua escolha.”
Setúbal aceitou a proposta. Autor do prefácio do livro de Horn, o banqueiro revelou que aquele momento o despertou para a filantropia. “Sua proposta de doação do nosso desacordo comercial foi especial, inspirando-me a fazer muitas doações ao longo da minha vida. Aprendi com ele que a razão para doar é a própria doação”, disse Setúbal na apresentação da obra.
Esse modelo foi efetivado “centenas de vezes”, segundo Horn. Com Victor Siaulys, fundador do laboratório Aché, foi um pouco diferente. Na primeira reunião que tiveram para negociar um imóvel, Horn se atrasou. Siaulys ficou nervoso. Mas depois entendeu o atraso. O dono da Cyrela estava em sua oração. Passada a tensão inicial, as conversas avançaram e chegaram a um valor, dividido em 10 vezes sem juros. Ao preencher o primeiro cheque, Horn pediu para abater um certo valor. Indagado sobre o motivo, respondeu: “É minha primeira contribuição para sua instituição, a Laramara [Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual].”
PÉS NO CHÃO
Elie Horn flutua. Logo ele que sempre teve os pés no chão para os negócios e seus prédios com fundações bem fixadas na terra. O que faz ele flutuar? O resultado das suas ações sociais.
A primeira vez que isso aconteceu foi em 1985. Em um domingo, um senhor bateu à porta de sua casa para pedir ajuda. Disse que precisava salvar a vida de sua filha, com câncer em estágio avançado. O custo para a cirurgia no exterior era alto. A princípio, Horn doaria 10%. Mas o prazo para salvar a criança era curto, e prometeu emprestar a quantia total necessária. Daria condições para o pai ir atrás dos 90% restantes.
Meses depois, já curada, a menina foi com sua mãe agradecer a doação. “A alegria que eu senti ao vê-la saudável e feliz me trouxe a sensação de flutuar, como se eu estivesse voando”, relatou Horn.
Em outra ocasião, já no final da década de 1980, com a crise da hiperinflação atingindo em cheio a economia, ele se esforçava para continuar o trabalho de filantropia. Com dificuldade, decidiu fazer a doação de dois apartamentos para uma instituição. Repentinamente, houve uma grande valorização do mercado imobiliário. Quando a entidade vendeu os apartamentos, recebeu um valor muito maior do que esperava. “Eu me senti flutuando novamente. Um sensação maravilhosa pelo fato de ter ajudado mesmo quando minha situação financeira não estava favorável, e tudo me levava a dizer não.”
SOLITÁRIO
Tudo isso acontecia de forma reservada. Até 2013, Elie Horn era avesso à exposição pública de suas iniciativas. Foi Aron Zylberman, do Instituto Cyrela, quem o convenceu a divulgar as ações do bem. O empresário recorda as palavras que ouviu: “Elie, não seja covarde! As pessoas precisam saber o que você fez para seguirem o seu exemplo”. Naquele momento, Horn entendeu que bons exemplos são importantes para motivar as pessoas, e que fazer o bem no anonimato é um ato solitário.
“Sua proposta de doação do nosso desacordo comercial foi especial, inspirando-me a fazer doações ao longo da minha vida.”
Roberto Setúbal, ex-CEO do banco Itaú
Essa foi uma das principais motivações para assinar o compromisso com o The Giving Pledge.
• As doações estão em pleno andamento.
• Um comitê formado por 20 pessoas de sua confiança gerencia todo o processo, desde as escolhas das instituições que recebem os aportes, os valores e o fluxo de entregas.
• São mais de 200 projetos atendidos, entre eles o Amigos do Bem, Gerando Falcões e a Associação Fernanda Bianchini (balé de cegos).
“A ideia é nunca parar”, disse Horn, que acorda 2h15 da manhã e ainda de madrugada começa sua rotina de cuidados com a saúde física e espiritual — descobriu em 2010 que tem Parkinson. Ele aprofunda seus estudos na filosofia judaica. Faz aulas de natação e musculação, além de sessões de fisioterapia e fonoaudiologia. “Tenho necessidade de aprimorar minha dicção para meu novo desafio: falar em público e motivar empresários.”
Seu raciocínio permanece rápido e bem construído. Tem a fala serena, apesar da intensidade reduzida da voz. Ao responder perguntas, lança um olhar vivo e direto a seu interlocutor, uma de suas características marcantes. Para se exercitar, caminha devagar pelo jardim de sua imensa casa e, por vezes, demonstra um certo cansaço. Em algumas ocasiões, recorre a uma cadeira de rodas.
Se as doações não param, o empresário e seus projetos também não. Além do livro, que terá toda a renda revertida para iniciativas sociais, ele encabeça um grupo de 20 executivos que têm se reunido nos últimos dois meses para pensar em soluções para o futuro do Brasil, que serão apresentadas para a sociedade e para os governos. “Essa ONG não tem dinheiro envolvido, é para falar do bem em termos de ideias. É um think tank [grupo de reflexão] de ideias”, afirmou.
Enquanto as discussões do grupo avançam, Horn opina sobre a atuação dos governos e dos governantes. O Brasil está na presidência do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), e na reunião da Cúpula de Líderes, em novembro, o presidente Lula vai defender a taxação de grandes fortunas, uma das bandeiras do atual governo. São 3 mil pessoas no planeta que detêm US$ 15 trilhões em patrimônio. “Se for para pagar imposto e fazer o bem, não tem problema. Sou a favor”, defendeu, ao ponderar que a arrecadação deve ser aplicada especialmente em educação e questões sociais.
Elie Horn segue otimista na sua missão de fazer o bem.
A Cyrela? Vai bem. Em 2023, registrou receita líquida de R$ 6,3 bilhões (alta de 16%), com lucro líquido de R$ 942 milhões (expansão de 15,1%). A trajetória pessoal do empresário ainda está sendo escrita. E a filantropia está no centro.
Os negócios? Está envolvido só com os do bem. Enquanto olha para o futuro e continua cada vez mais engajado com as doações, ele antecipa a frase que desejaria ver escrita na sua lápide: “Esse homem tentou fazer o bem”. O verbo tentar foi colocado do alto da sua humildade. Elie Horn faz – e dissemina – o bem.
ENTREVISTA
Elie Horn, fundador da Cyrela
O que é o bem?
Bem é a essência da vida. Não tem nada que valha a pena fazer se não for para o bem. É tudo que dá significado à vida. Estamos a troco de que na Terra? Fazendo o quê? Qual nossa missão? Qual o fim? Por que eu vivo? Porque eu existo? É em razão do bem que decidi escrever esse livro e dar alguns exemplos do que nós fizemos em termos de bem.
O que o senhor vê para o futuro?
Eu sou positivo, sou otimista. Ser otimista ajuda a construir, produzir, ajuda o mundo a crescer. Eu sou muito otimista, não pouco. Muito! Faço 80 anos agora em julho. Eu estou pensando em negócios novos, alternativos, fora da caridade. Negócios produtivos. Não posso parar, não quero parar, só paro no leito de morte. A não produção é o ócio, e o ócio é mortal. Enquanto estiver vivo e consciente, vou trabalhar.
O que mais lhe preocupa?
Tem algumas coisas que me preocupam, até certo ponto. Como sou positivo, não posso pensar em tragédias. Preocupa-me quando vejo alguém morrendo de fome, porque você é culpado pelo sistema. Quando se vê alguém que morre por falta de medicina, você é culpado. Isso preocupa.
Nunca pensou em ingressar na política?
Graças a Deus, não. Não sou bom para política. Sou muito cru. Não sei, nem quero fazer política.
Os grandes empresários brasileiros já estão bem engajados na filantropia ou precisam fazer mais?
Nunca é demais. Ninguém faz tudo o que pode fazer. A meta da vida é crescer. Se não cresce, morre. No bem é igual. Se não fizer o bem, você morre. Passar por essa vida, viver, sem fazer nada especial, é muito triste. É muito desanimador e triste. Acho que falta mais conscientização. Uma pessoa consciente age diferente.
O governo brasileiro vai levar uma proposta para reunião do G20 para taxar os bilionários. O senhor concorda?
Se for para pagar imposto e fazer o bem, não tem problema. Se eu pudesse determinar algo, eu faria uma política social no tempo, que não muda com os partidos. Algumas coisas seriam tratadas de maneira apolítica pelos governos sucessivos. Sou a favor da taxação para poder ajudar a quem precisa. O problema é mudar a tendência toda vez que muda o partido.
No Brasil, a parte fiscal levanta muitos debates. Existe alguma preocupação sua com o governo?
Todo governo que gasta mais do que deve, apanha, cedo ou tarde. A vida tem algumas verdades. Quem ganha 10 e gasta 11, o que acontece? Tem problemas. Com o País é a mesma coisa.
Como o sr. vê a evolução social do Brasil nos últimos anos?
No País, as empresas privadas pagam 0,2% do PIB para fins sociais. Nos Estados Unidos, isso é 0,8%. Precisamos fazer mais para chegar ao nível americano. É onde queremos chegar. O Movimento Bem Maior (ONG de estímulo à filantropia que conta com nomes como Luciano Huck, Eugênio Mattar, além de Elie Horn como associados) tem como meta chegar a 0,4%. Estamos trabalhando. Não é fácil. Não vamos chegar a 0,4% agora, mas é uma meta.
Existem doações voltadas para o setor imobiliário, para ajudar as pessoas a terem casas?
Pouco. É muito mais aplicado o dinheiro em causas sociais e em educação. Mas no Rio Grande do Sul, recentemente, 40 pessoas (colaboradores) que tiveram suas casas destruídas serão reconstruídas 100% pela Cyrela. Mas é pouco. O segredo é mais educação. Educação é o futuro. Sem educação não tem como avançar.
No The Giving Pledge, bilionários se comprometem a doar fortunas
Criado em 2010 pelo megainvestidor Warren Buffett, pelo fundador da Microsoft Bill Gates e pela filantropa e empresária Melinda French Gates, o The Giving Pledge é um movimento de super-ricos que se comprometem a doar a maior parte de sua riqueza para causas beneficentes, seja durante a vida ou em testamento.
Atualmente são 247 pessoas ou famílias que assumiram o compromisso. Eles são de 30 países diferentes e têm entre 30 e 100 anos. Um dos signatários mais recentes é Sam Altman, CEO da OpenIA, que tem revolucionado o mundo com seus serviços de Inteligência Artificial.
Elie Horn e a esposa Susy assinaram o termo em 2015. “Como seres humanos, não levaremos nada conosco para o outro mundo — as únicas coisas que levaremos são as boas ações que realizamos neste mundo. Estamos neste mundo para sermos testados, e cada um de nós deve conceder o fruto de suas habilidades”, disseram eles, em carta aberta divulgada quando entraram no movimento.
Em seu livro, Horn acrescentou. “Nascemos sem trazer nada material. Morremos sem levar nada material. No meio, brigamos por algo que não trouxemos nem levaremos.”
Semana passada, Warren Buffett, de 93 anos, definiu em seu testamento que deixará sua fortuna de US$ 130 bilhões para fundo de caridade supervisionado pelos três filhos, Susie, Howie e Peter. “O dinheiro deve ser usado para ajudar as pessoas que não tiveram a mesma sorte que nós tivemos”, disse Buffett. Ele é a décima pessoa mais rica do mundo, segundo o Bloomberg Billionaires Index.
No fim de maio, o The Giving Pledge realizou seu 14º Encontro Anual. Em seu discurso, Melinda disse que segue inspirada pelo grupo e grata por fazer parte da comunidade. “Um dos pontos fortes do Giving Pledge é que os membros representam tantos países, gerações e perspectivas diferentes — isso nos ajuda a aprender e desafiar uns aos outros”, disse ela, que tem fortuna avaliada em US$ 10,9 bilhões.
Bill Gates
Com US$ 134,4 bilhões em patrimônio, afirmou que, diante das crescentes crises globais que colocam demandas adicionais sobre recursos públicos, a filantropia preenche lacunas críticas de financiamento e catalisa inovações que salvam vidas. “Sou grato que tantos signatários do Giving Pledge tenham se mobilizado para agir por meio de sua filantropia.”