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Mais sobre desinflação e soft landing nos EUA

A possível queda de juros em setembro deve confirmar o êxito da estratégia do Fed de baixar a inflação sem aumento no desemprego

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Vitoria Saddi: "A queda da inflação está ocorrendo sem um aumento no desemprego porque a curva de oferta agregada da economia está se deslocando para a direita e expandindo a produtividade do sistema" (Crédito: Divulgação)

Por Vitoria Saddi

Escrevi em artigo anterior que a queda da inflação nos EUA estava ocorrendo sem uma deterioração no nível de emprego e folha de pagamento. Desde então, os dados continuam corroborando tal visão. O “core PCE” em 12 meses – a medida usada pelo Fed – caiu de 2,6% para 2,4% de maio para junho. Apesar de estar acima da meta do Fed de 2%, existe uma clara tendência de queda da inflação nos EUA. Os dados do non farm payroll de junho vieram acima do esperado (206 mil contra expectativa de 180 mil), mas houve uma leve alta do desemprego (de 4% para 4,1%). Eu havia argumentado que a curva expressa pela diferença entre os títulos de 10 e 2 anos tinha um spread negativo, significando um prenúncio de recessão. O spread negativo ainda existe. No entanto, a diferença vem caindo, indicando que a expectativa de recessão está diminuindo. Meu intuito é argumentar que o Fed está conseguindo trazer a inflação para a meta de 2% sem provocar uma recessão aberta na economia.

O Fed possui um mandato duplo. Assim, os objetivos de política monetária devem ser tais que atinjam tanto a estabilidade de preços como um nível de emprego sustentável. Nesse sentido, o mercado de trabalho não pode estar tão aquecido a ponto de induzir pressões de custos na inflação. Por outro lado, o desaquecimento do mercado de trabalho pode levar a uma alta do desemprego, acima do nível “natural” de 4%. Uma alta do desemprego pode significar que o Fed não está cumprindo uma parte do dual mandate no tocante ao nível de emprego. Em síntese, esse mandato duplo sinaliza ao mercado que o Fed irá perseguir a meta de inflação (em tempo contínuo) de 2% sempre levando em consideração o custo em termos de alta do desemprego. Em termos bastante simplificados, o Fed quer ambos: desemprego baixo e inflação baixa e estável. Até o presente momento, tal mandato duplo eram apenas palavras ao vento. Ou seja, em todas as situações anteriores de mais de 30 anos de dados da economia americana percebia-se que a presença de uma inversão da curva de juros era um prenúncio de recessão. No período que se seguia havia queda no PIB e alta do desemprego que ficava bastante acima do nível natural.

E o que mudou na situação atual? Teoria econômica não muda, por isso é tão potente e perene. O que mudou foi a realidade. A queda da inflação está ocorrendo sem um aumento no desemprego porque a curva de oferta agregada da economia está se deslocando para a direita e expandindo a produtividade do sistema. Isso vem sendo refletido com o boom das ações de tecnologia, mais especificamente devido à alta das ações das empresas ligadas à Inteligência Artificial. É por isso que tanto o S&P500 quanto o Nasdaq estão subindo. Os mercados estão refletindo o aumento dos valuations dessas empresas. Descarto a hipótese de bolha sobretudo porque bolhas são fenômenos irracionais pautados por um frenesi do mercado que termina por explodir, sem que ninguém saiba prever o quando e as razões para tanto. Bitcoin foi uma bolha? Explodiu? A crise de 2008 talvez tenha sido uma bolha? E o Nasdaq nos anos 2000? Explodiu? O fato a ser enfatizado é que o aumento da produtividade da economia americana e o crescimento da oferta agregada daquela economia é o fator que está explicando o fenômeno inédito do soft landing (pouso suave). Afirmei num artigo aqui no ano passado que seria um fato inédito se o Fed conseguisse trazer uma inflação de 10% para 2% sem produzir uma recessão, ainda que pequena. Hoje percebo com mais certeza que a autoridade monetária foi privilegiada com o boom da Inteligência Artificial, e isso vem aumentando a produtividade, baixando os custos e permitindo que haja queda da inflação sem aumento no desemprego.

Resta ainda mencionar que sem a credibilidade imaculada do Fed (a ideia do “readmylips”), a história contada acima não teria acontecido. Não há dúvidas de que o Fed está comprometido com a queda da inflação e está sendo cauteloso ao anunciar a primeira queda de juros, que deverá ocorrer em setembro próximo.

*VITORIA SADDI é estrategista da SM Futures. Dirigiu a mesa de derivativos do JP Morgan e foi economista-chefe do Roubini Global Economics, Citibank, Salomon Brothers e Queluz Asset, em Londres, Nova York e São Paulo. Também foi professora na California State University, na University of Southern California e no Insper. É PhD em economia pela University of Southern California.