Dinheiro Rural

“O setor agropecuário é conservador”, diz ex-ministra Kátia Abreu

Crédito: Airton El Adas

Kátia Abreu: "Eu sou uma liberal, sou de centro-direita, uma ruralista, e não tenho a menor dificuldade em conviver com a esquerda" (Crédito: Airton El Adas)

Por Alexandre Inacio

RESUMO

• Produtora rural no Tocantins, a ex-senadora ganhou a antipatia de parte do agronegócio depois de sair em defesa da ex-presidente Dilma e ter se posicionado a favor de Lula.
• Para ela, o atual presidente “caprichou” nos dois últimos Planos Safra, ajudando o setor, mesmo em tempos de cortes e ajuste fiscal

Há quase um ano longe da vida pública, Kátia Abreu se dedica exclusivamente à iniciativa privada. Aos 62 anos, a ex- senadora e ex-ministra da Agricultura de Dilma chegou a ser cotada para voltar à Esplanada no atual governo, mas encontrou resistência.

Ainda firme em suas opiniões e convicções, Kátia tem dividido seu tempo entre Palmas (TO), onde mora, Brasília, onde também possui residência, e São Paulo. Na capital paulista está a maioria dos seus clientes, para quem presta consultoria, além das empresas das quais é conselheira, entre elas a JBS, de quem já foi crítica ferrenha num passado não muito distante.

“E se precisasse faria tudo denovo. Era o meu papel e fiz com muita convicção”, disse a ex- ministra à DINHEIRO RURAL, diretamente de Palmas, em teleconferência.

RURAL – Quais são os setores que mais têm chamado a atenção dentro do agronegócio hoje em dia?
Kátia Abreu – A maior preocupação que nós devemos ter hoje no Brasil é com a situação econômica da China. Não é desesperador, mas é preocupante. Nesse segundo trimestre, houve uma pequena queda. Ela cresceu 4,7%. Para nós é muito, mas para eles é muito pouco. Isso significa queda na demanda de commodities. Agora, ainda temos muitas vantagens. Em um passado recente, há 40 ou 50 anos, a preocupação do mundo era com a quantidade de comida. Quando superamos essa questão, o mundo passou a se preocupar com a qualidade. Hoje, essas duas questões estão resolvidas. O terceiro ciclo que vejo é garantir a segurança alimentar aliando a transição energética. A comida e o agro, agora, estão muito associados à questão energética, e isso se transformou em uma ordem mundial.

Onde entram os biocombustíveis nessa história?
O biocombustível passa a ser uma necessidade para descarbonizar o ar, o mar e as cidades. Em setembro, haverá a definição de quanto de biocombustível haverá nos bunkers dos navios. Estima-se que será em torno de 10%. Imaginando que todo o etanol utilizado fosse do Brasil, precisaríamos dobrar a produção nacional. São 70 mil navios de carga rodando pelo mundo. O [Joe] Biden fez um grande e belíssimo programa de SAF [Combustível Sustentável de Aviação, na sigla em inglês] e os Estados Unidos, apesar de serem o maior produtor de etanol do mundo, não têm o suficiente para atender o programa. Possivelmente, seremos exportadores de etanol. Essas são grandes oportunidades para o Brasil. Tenho certeza que tanto em segurança alimentar quanto em segurança energética, o Brasil é professor.

Qual leitura a senhora faz da atual política agrícola do Brasil?
Eu acompanhei o governo da presidente Dilma, nos seus seis anos e meio de mandato, e agora o do presidente Lula e dos demais, obviamente. Sinceramente, os números demonstram que foram governos que ajudaram muito o setor agropecuário. Ninguém pode dizer o contrário. O presidente Lula vem fazendo recordes para o financiamento da safra e está certo em fazer. Esse é um setor que, comprovadamente, tem dado resultado ao País. Ninguém pode negar que é um recurso que dá retorno. Não tem nada de graça para o agro, tem apenas o necessário e o justo. Nós tomamos o recurso agrícola e pagamos.

O setor ainda tem medo do que pode acontecer, especialmente em relação aos movimentos sociais?
Acho que os governos Lula, os governos do PT, provocam um certo medo em algumas pessoas, não sei por quê. Nos governos Lula um e dois, eles [movimentos sociais] estavam fortíssimos, e ainda não havia uma divisão igual à que existe hoje. E, se naquele período ele não fez as loucuras que as pessoas acham que ele pode fazer, vai fazer agora por quê? Lula teve oito anos, Dilma teve mais seis anos e meio para fazer essas loucuras ditas pelos radicais de direita, e nunca fizeram. Esse medo é injustificável. Agora, eu entendo e compreendo, por fazer parte dele, que, no mundo inteiro, o setor tem uma tendência mais à direita. O setor agropecuário é conservador. Eu sou uma liberal, sou de centro-direita, uma ruralista, e não tenho a menor dificuldade em conviver com a esquerda. Aprendo muito com eles e procuro ensinar a eles o que eu sei do meu setor. É uma troca maravilhosa, e o presidente Lula caprichou em seu plano agrícola passado e no atual.

As críticas que o setor faz a Lula e ao PT são injustas?
As críticas nos alertam de muita coisa. Agora, o exagero, o preconceito e a ignorância me assustam um pouco. Um setor tão moderno, de vanguarda, que arrisca, que quer exportar, fazer excelência e, de repente, em um modus operandi pessoal de relacionamento, às vezes engata uma ré e vai lá para a idade da pedra. Eu não fico com raiva, eu fico triste, porque as pessoas podem ser de direita, de esquerda, podem não gostar do presidente A, não gostar do presidente B, mas o radicalismo, a ignorância, o exagero, eu não tenho tempo para isso. Eu já passei da metade da minha vida. O resto que tenho, quero aproveitar o máximo, também criticando determinadas coisas, mas não com esse reacionarismo exacerbado que eu vejo em algumas pessoas.

Esse radicalismo é algo do agro ou de algumas pessoas ou grupos dentro do setor?
Entre 15% e 20% são extremamente reacionários, que não aceitam conversar. Agora, transportando para o outro lado, quando eu estava na CNA, nós também tínhamos dificuldade, da mesmíssima forma, de dialogar com algumas pessoas do setor ambientalista. Eu fui entrar no Ministério do Meio Ambiente muitos anos depois, com Izabella [Teixeira] ministra, não podia nem ir lá. Esse radicalismo é nocivo nas duas pontas. Ele impede o diálogo porque essas pessoas se cegam, tanto na extrema direita quanto na extrema esquerda e não querem compreender o mundo de forma diferente. A riqueza do mundo está em você não se despersonalizar, mas se renovar todos os dias com ideias novas. O brasileiro é conversador em sua essência, e eu também me enquadro assim, uma conservadora nos hábitos, nos costumes. Tudo isso deveria ser amenizado porque o presidente Lula foi absolvido.

Mas a Lava Jato tirou debaixo do tapete uma série de problemas, não?
Nós sabemos muito bem a quantas andou a Lava Jato. Ela teve suas utilidades, mas destruiu grandes setores da sociedade brasileira, como a construção civil. Quando você combate a corrupção, você não combate empresas, mas pessoas que praticaram o mal. O exagero do heroísmo, do bem contra o mal a qualquer custo e preço, inclusive, atingindo o Judiciário, desobedecendo leis, as regras do País, o Estado de Direito, eu acho imperdoável. Essa ação tinha como foco uma posição política futura. Hoje, ninguém mais tem dúvida de que [Sérgio] Moro planejava a Presidência da República.

Voltando para o agro, o último Plano Safra atende a expectativa do setor?
Eu acredito que não pode haver regressão. O que vimos foi um aumento no valor de R$ 76,6 bilhões, onde o ministro [Fernando] Haddad e todos nós brasileiros estamos na torcida para tapar um déficit de R$ 30 bilhões. O governo poderia destinar isso para o déficit público, para o Brasil crescer, mas não. O presidente optou por não deixar o setor agropecuário na mão, mesmo em um período de grande ajuste fiscal. Esse déficit não é do Haddad, não é do Lula, é acumulado de anos e anos. Acredito muito que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são responsáveis por encontrar formas de minimizar esse déficit.

A senhora acredita que o contingenciamento anunciado pelo governo possa chegar ao Ministério da Agricultura?
Temos que separar o que é o orçamento do ministério e o que é política pública. No crédito agrícola, eu tenho a convicção de que isso não vai acontecer, mas no Ministério, sim. Eu fui vítima de muitos cortes. Existe um corte de gente trabalhadora e um de gente preguiçosa. O de gente preguiçosa é quando a Fazenda determina que o corte é de 20%, e o ministro vai lá e dá um corte geral. Agora, quando é um ministro trabalhador, ele tem que escolher o que é essencial e não cortar. Eu cortava diárias, recurso do meu gabinete, viagens internacionais. Tinha dois lugares que eu não aceitava cortar e deixava o orçamento cheio. A Embrapa e o setor da defesa agropecuária. A máquina é muito inchada, gasta muito e pode sempre otimizar um pouco.

Incentivar investimentos não ajudaria a produzir essa arrecadação que está faltando?
Existe uma burocracia desnecessária. Se esses investimentos fossem feitos com mais rapidez, talvez nem estaríamos falando desses R$ 30 bilhões, porque o País estaria crescendo tanto, que já estariam cobertos. É uma burocracia ambiental insuportável, sem diálogo em alguns espaços do governo ainda hoje, incluindo o Ministério Público do Meio Ambiente, tanto o estadual quanto o federal, que têm criado dificuldades onde não tem. Exemplo: nós somos importadores de 95% do potássio usado na agricultura, há mais de 40 anos. E ao contrário do que se pensa, existe potássio no Brasil. Nós não conseguimos tirar o potássio do chão porque, a cada dia que passa, são impedimentos e mais impedimentos que aparecem. Autazes, no Amazonas, é um município riquíssimo em potássio, que pode levar o Brasil à autossuficiência e até à exportação. Há nove anos uma licença ambiental está impedida pelo Ministério Público Federal, acatada pela Justiça, muitas vezes por desconhecimento, temor, da pressão que é a questão da floresta, a questão dos índios. Aliás, eu sou conselheira da empresa dona da mina, mas esse é um tema que eu brigo há 40 anos.

Qual o motivo?
A reserva indígena está a nove quilômetros da mina, mas nem por isso vamos deixar de pagar royalties. Essa foi uma das condições que coloquei quando entrei lá. Vamos fazer um programa de doação de 2% de todo o potássio explorado para pequenas propriedades, algo que quero conduzir pessoalmente. Nós importamos potássio de Israel, Rússia, Bielorrússia e Canadá. Sabe de onde vem o potássio que importamos do Canadá? De reserva indígena. Nós pagamos royalty para índio canadense e não podemos pagar para índio brasileiro. Por que o mesmo Ministério Público não proíbe a importação do potássio que vem de área indígena? É uma contradição. São dois, três, quatro anos para se liberar licença. Não é para fazer de qualquer jeito, mas as pessoas têm o sentimento que a demora dá segurança. Tempo não diz nada. O que diz são regras claras, transparentes, objetivas, do rito que tem que ser seguido. O Brasil tem muito o que evoluir nessa máquina pública. A reforma pública não é apenas de instituições, mas também de processos.

O Arcabouço Fiscal pressupõe um aumento de arrecadação. A senhora imagina que o agronegócio seja taxado?
Eu não vejo como tributar a exportação, porque não podemos exportar tributos. Esse é um setor sensível, tanto que no mundo inteiro não há tributação. Pelo contrário, lá se paga para o agricultor. Como eu não vejo isso em lugar nenhum do mundo e esse é um assunto sensível, tributar alimentos é meio estranho. Tem outras formas para que a gente possa aumentar a arrecadação de forma equânime, não aumentando a carga, mas aumentando quem paga. Acho que tem muita gente no mundo que não paga imposto.