A recessão nos EUA vista pela inversão da curva de juros
Por Vitoria Saddi
Desde o início de 2022, os investidores estão enfrentando a estranha dinâmica do mercado de títulos públicos expressa pela inversão da curva de juros, a chamada ‘yield curve’. É uma ocorrência rara. Acontece sempre que a taxa de juros dos títulos de curto prazo excede a taxa de juros dos títulos de longo prazo. Enquanto isso possa soar como algo técnico ou sem importância, a história financeira recente dos Estados Unidos sugere que a inversão da curva de juros é sinal de alerta, sendo um potencial precursor de recessão. Aqui pretendemos avaliar a reação dos investidores e o significado de tal problema no atual contexto americano.
O conceito da curva de juros tem início com títulos de diferentes ‘durations’ e é sempre baseada nos do tesouro americano. São títulos de qualidade excepcional (todos garantidos pelo governo dos EUA) e denominados ativos livre de risco. Em diferentes graus, eles integram uma parcela significativa das reservas internacionais de vários países, como Brasil e China.
Uma forma simples de entender a curva de juros é olhar as taxas de juros, ou ‘yields’, pagos pelo tesouro americano com ‘durations’ de três meses, e os de dois, cinco, dez e 30 anos. Os investidores em geral esperam obter rendimento maior quanto maior for a ‘duration’. Assim, em termos normais, o título de 30 anos paga mais do que um de dois meses, por exemplo. Essa é a curva normal de juros, que ocorre quando os ‘yields’ sobem à medida que o prazo de resgate (‘duration’) aumenta.
No entanto, há circunstâncias especiais quando a curva fica invertida, evidenciando que as taxas dos títulos curtos são maiores do que as dos longos. A inversão pode ser vista com o Fed aumentando juros de curto prazo acima da taxa de juros neutra (a que não provoca nem inflação nem desemprego). Ninguém sabe ao certo o valor preciso de tal taxa neutra. Ainda assim, as taxas de longo prazo, ajustadas pela inflação, são uma boa proxy para tanto. Taxas curtas muito acima da neutra tendem a desaquecer a economia. E desaquecem até a chegada da recessão. Ela emerge porque os bancos centrais preferem errar para cima e manter a política contracionista a terminar o ciclo de alta antes de a inflação baixar.
Há três formas de analisar a inversão da curva.
A primeira delas é tratar a inversão como problema de informação, inerente ao mercado de títulos (renda fixa). A inversão da curva expressa a visão dos investidores do mercado de títulos públicos sobre a inflação futura e o crescimento da economia. Por essa análise, a inversão não é o resultado deliberado do Fed de subir as taxas curtas acima da neutra. De fato. Porque a inversão reflete tão somente a opinião do mercado de títulos sobre a taxa neutra e a habilidade dele em prever a recessão. O mercado de títulos consegue enxergar crescimento e inflação de modo mais preciso que o mercado de renda variável porque indicadores como crescimento e inflação importam mais para os retornos dos investidores em títulos públicos do que aos compradores de ações.
A segunda abordagem é analisar a inversão da curva como uma espécie de profecia autorrealizável (a ideia original foi sugerida por Robert Armstrong). Em tempos de Fomo (fear of missing out) e internet, todos têm opinião sobre tudo e assim todos são capazes de ‘prever’ a inflação. Com isso, quando as empresas percebem a inversão da curva elas se tornam mais cuidadosas nos seus investimentos e contratações futuras. Isso faz com a que a ameaça de recessão se torne ainda mais presente. Em suma, o que se previa se autorrealizou.
A terceira explicação é a visão causal. Esta última nos diz que se a autoridade monetária promover uma política contracionista por bastante tempo, de modo abrupto e rápido você conseguirá promover recessão.
No dia que escrevo este artigo, a taxa de três meses estava em 5,34% e a de dois anos em 4,75%. As taxas mais longas estavam menores, sendo 3,76% a de dez anos e 3,6% a de 30 anos. Existe uma larga evidência econométrica de que tal inversão antecipa as recessões com um lag de quatro trimestres. De fato, se analisarmos os dados percebe-se que a curva se inverteu oito vezes desde 1968. Todos os oito episódios foram seguidos de recessões. Assim, a inversão atual anteciparia em princípio mais uma recessão. Talvez por isso o Fed tenha resolvido interromper o ciclo de alta muito antes de a inflação atingir a meta declarada de 2%.
Vitoria Saddi, PhD em Economia pela University of Southern California, é estrategista da SM Futures. Atuou como economista-chefe da Roudini Global, do Citibank, da Queluz Asset e do Salomon Brothers