“Progressos no controle da inflação cobram custo econômico e social muito elevado”, diz economista Antonio Corrêa de Lacerda
Na avaliação do economista, os indicadores têm surpreendido positivamente porque a formação das expectativas é moldada por uma visão conservadora do mercado financeiro
Por Hugo Cilo
Um dos mais renomados economistas do País, Antonio Corrêa de Lacerda transita com desenvoltura entre o mundo acadêmico e os bastidores do poder. Professor-doutor do Programa de Pós-graduação em Economia Política da PUC-SP e doutor em economia pela Unicamp, ele tem atuado como diretor de economia em empresas e organizações, e consultor econômico. É autor de vários artigos e coautor de mais de 20 livros na área, sendo o mais recente Reindustrialização para o desenvolvimento. Ex-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), atualmente é assessor da presidência e membro da Comissão de Assuntos Estratégicos do BNDES.
DINHEIRO — Na sua avaliação, em uma escala de zero a dez, como está a economia brasileira hoje?
ANTONIO CORRÊA DE LACERDA — A economia cresce em ritmo de 3% ao ano em 2023 e 2024, bem acima das previsões dos meses iniciais de ambos os anos. A inflação tem se mantido dentro dos limites da meta, o desemprego em nível recorde de baixa e a renda em elevação. A retomada, em novas bases, de programas sociais como o Bolsa Família, o reajuste do salário mínimo, aposentadorias e pensões, assim como o crédito, têm feito diminuir a insegurança alimentar e a vulnerabilidade social, favorecendo o mercado doméstico. Também há claros avanços no ambiente regulatório e institucional, como a reforma tributária em andamento e outras iniciativas. Há uma retomada do papel do Estado e das políticas públicas, sem exclusão, pelo contrário, em parceria com o setor privado, como nas boas experiências internacionais. A Estadofobia, assim como o liberalismo extremado, não agrega. Vejo que há uma combinação adequada na atual gestão. Portanto, o conjunto da obra merece pelo menos nota 7.
Quais são os maiores desafios para o governo no campo econômico?
Manter o crescimento da economia com estabilidade inflacionária e fiscal. Isso, em conjunto com as iniciativas em curso: Nova Indústria Brasil (NIB), Novo PAC, o Plano de Transição Ecológica (PTE), que são os programas estruturantes e seus desdobramentos, devem impulsionar os investimentos, elevando a Formação Bruta de Capital Fixo e reverter a desindustrialização estrutural.
E quais são as maiores oportunidades?
Nosso mercado interno, o oitavo PIB mundial e uma das maiores populações, são ativos importantes. Somos também importantes exportadores no complexo agromineral, pecuário, petrolífero e de alimentos. Excelentes bases para maior agregação de valor na indústria e em serviços sofisticados, assim como já bem-sucedidos nichos industriais, como aviação, motores e veículos, por exemplo. O Brasil, sabidamente, é uma potência energética, tanto a fóssil quanto a renovável. Quase 50% da nossa matriz energética provém de fontes renováveis, contra uma média mundial de 15%. As fontes hídrica, eólica, solar e biomassa têm aumentado sua participação e já ultrapassam 80% da matriz elétrica. É preciso aproveitar esta vantagem competitiva para não apenas inibir barreiras não tarifárias aos nossos produtos, especialmente por parte da Comunidade Europeia, mas viabilizar o reconhecimento nos grandes fóruns internacionais, como o G-20 e a COP-29, agora em novembro, e a COP-30, que ocorrerá no final do ano que vem, no Brasil, em Belém do Pará. Como exemplos, a fabricação de alimentos, assim como do aço verde, papel e celulose, alumínio, ou ainda os biocombustíveis, incluindo o SAF (para aviação). Precisamos valorar e fazer perceber a importância econômica da Amazônia como bem comum universal.
A Estadofobia, assim como o liberalismo extremado, não agrega. Vejo que há uma combinação adequada na atual gestão’’
Como você avalia a atuação do Banco Central sob a gestão de Campos Neto?
Os progressos no controle da inflação cobram um custo econômico e social muito elevado devido a um excesso de conservadorismo na política monetária, especialmente na taxa básica de juros, a Selic, que acaba de ser elevada a 10,75% ao ano para uma inflação ao redor de 4% ao ano. Isso representa uma taxa real de juro básico maior que 6% ao ano, absolutamente deslocada da média internacional, além de incompatível com o retorno esperado dos investimentos produtivos. Me pareceu também uma atuação excessivamente pautada pelo mercado financeiro. Ouvir o mercado é bom, mas a produção, o comércio, os serviços, assim como empresários, empreendedores, trabalhadores e consumidores, também são mercado, numa acepção mais ampla.
A Selic e o câmbio nos patamares atuais estão bem calibrados ou deveriam estar em outros níveis?
A taxa de câmbio está muito próxima de um nível adequado para a economia, ou seja, que a viabilize como um dos principais macropreços, fomentando a produção e exportação, sem gerar pressões adicionais na inflação. É preciso, no entanto, diminuir a volatilidade (instabilidade) da taxa de câmbio, o que gera pressões na inflação e incerteza, por dificultar o cálculo econômico e as decisões envolvendo investimentos produtivos e comércio exterior. Já a taxa de juros, Selic, está muito acima do desejável e razoável, considerando o cenário externo e as condições domésticas. Isso gera transtornos, pois favorece as aplicações financeiras em detrimento do investimento produtivo, encarece o crédito e o financiamento e pressiona o custo de rolagem da dívida pública. Todos esses são fatores que restringem o crescimento econômico e jogam contra a saúde fiscal.
Como deverá ser a gestão de Galípolo?
Entendo que Galípolo poderá fazer uso da sua formação sólida e eclética no campo da ciência econômica, assim como da sua bem-sucedida experiência como economista no mercado, para avançar nas melhores práticas de política monetária, não apenas no que se refere à definição da taxa básica de juros, mas de regulação e aperfeiçoamento do mercado privado de crédito e financiamento. Também será uma oportunidade de ampliação da interlocução com amplos setores da economia e da sociedade, no sentido de tornar o BC mais próximo dos objetivos e anseios do País. A sua recente aprovação unânime pela Comissão de Economia e depois, com larga margem, no Congresso, lhe dá bom respaldo.
Qual a sua opinião sobre vantagens e desvantagens do Arcabouço Fiscal?
Entendo que houve progressos com o NAF relativamente ao Teto de Gastos (EC95), uma vez que limitava ao extremo os investimentos públicos. Não por acaso o Brasil atingiu, em 2022, o menor nível histórico de investimento público. Se o NAF cria limites, por outro lado, abre mais espaço para os investimentos. A sua concepção foi a possível, considerando condicionantes econômicos e políticos da ocasião em que foi adotado. Isso não quer dizer que não possa ser aperfeiçoado, gerando mais flexibilidade, sem abrir mão de uma visão intertemporal de ajuste das contas públicas.
“Há um claro desbalanço entre as obrigações do Executivo e a capacidade inédita de influência sobre o orçamento por parte do Parlamento”
Como o governo conseguirá combater e atingir a meta de déficit zero?
O contexto internacional pós-Covid-19, crise climática e conflitos geopolíticos tem implicado, entre outros fatores, elevação das demandas junto aos Estados Nacionais. Tudo isso gera despesas. Praticamente todos os países relevantes do G-20 são deficitários e endividados. O Brasil não é diferente. Será fundamental avançar na próxima fase da Reforma Tributária sobre impostos diretos, especialmente IR, que é regressivo para os super ricos, e ainda rever os gastos tributários, total de desonerações e incentivos, que superam R$ 700 bilhões ao ano, alguns sem o menor retorno econômico-social para o coletivo. Vale ainda lembrar que nos diferencia o extraordinário custo de rolagem da dívida pública, um custo de mais de R$ 800 bilhões nos últimos doze meses, que equivale ao pagamento de juros por parte do Governo. Nos últimos dois anos, tem sido acima de 7% ao ano do Produto Interno Bruto (PIB). A média dos países da OCDE é de 3% ao ano, mesmo com dívidas proporcionalmente muito maiores.
E a atuação do BNDES?
A retomada do papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é, neste campo, virtuosa. Sem subsídio do Tesouro Nacional, o banco vem sendo importante instrumento de fomento aos investimentos, seja financiando a infraestrutura, a indústria e os serviços, nos quais as aprovações, que significam futuros desembolsos de financiamento, mais que dobraram, considerando o desempenho do primeiro semestre de 2024 comparativamente ao período homólogo de 2022. A carteira total de crédito do banco chega a R$ 500 bilhões, com um nível de inadimplência perto de zero.
Qual a sua avaliação de Fernando Haddad à frente da Fazenda?
Haddad e equipe têm feito excelente trabalho, especialmente levando em consideração o quadro externo e a correlação de forças doméstica. Seu ministério tem adotado agenda positiva e ampliado a interlocução com os agentes econômicos, com a comunidade internacional e a opinião pública em geral. E isso é importante, pois o grande desafio é dar transparência às decisões de política econômica, abrindo espaço para o debate, o que tem sido feito.
Como o governo conseguirá seguir com as pautas econômicas diante de um Congresso com apetite por mais recursos?
Há um claro desbalanço entre as obrigações do Executivo, ou pelo menos da forma com que são vistas pela sociedade, e a capacidade inédita de influência e decisão sobre alocações do orçamento público por parte do Parlamento. Isso é um desafio e tanto para a viabilização da pauta econômica que interessa à Nação. Muitas vezes, algumas propostas do Governo Federal no Congresso Nacional que não passam são erroneamente apontadas como derrotas do Executivo, quando na verdade o interesse coletivo é que perde relativamente a interesses localizados. Interesses às vezes legítimos, mas que ganham uma dimensão desproporcional ao seu mérito e retorno econômico e social.
Quais serão os impactos das turbulências internacionais no Brasil?
Existe um reposicionamento das cadeias internacionais de suprimento, muito em função das dificuldades e do encarecimento da logística. Já tínhamos sofrido tal impacto na pandemia de Covid-19, com os EPIs e IFAS, depois com os chips e fertilizantes com a guerra Rússia–Ucrânia. Agora, os conflitos no Oriente Médio têm refletido nos preços do petróleo e também nos fretes marítimos. Se isso é uma dificuldade para o Brasil, por outro lado, reforça a necessidade da reindustrialização sustentável, que leve em conta as condicionantes externas e as potencialidades brasileiras. Apesar da desindustrialização precoce, ainda possuímos o DNA industrial e o maior parque fabril da América Latina.
Por que indicadores macroeconômicos, como PIB e desemprego, estão vindo melhores do que as projeções?
Há uma excessiva visão capitaneada pelo mercado na formação das expectativas e, portanto, influenciando os prognósticos, que tendem a ser mais conservadores.