E se eu não fosse brasileiro?
Por Jorge Sant’Anna
Como um grande apreciador da música clássica, sou assinante da OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Desta forma, tenho o prazer de mensalmente ir à Sala São Paulo para degustar o que existe de melhor em música, não só no Brasil, mas no mundo – local maravilhoso, tanto do ponto de vista arquitetônico quanto do estético, rivalizando com as melhores salas do mundo. Entrar lá é como uma viagem ao passado, com todo o conforto e tecnologia dos tempos atuais.
No entanto, chegar à Sala São Paulo é quase um filme de terror. Ao cruzar o centro da cidade, fico sempre me perguntando: e se eu não fosse brasileiro? Como eu reagiria ao ver uma legião de pessoas, ou melhor, espectros de seres humanos, se arrastando pelas ruas escuras do centro da cidade mais rica do País? Iria me perguntar como e por que a sociedade civil não se articula para combater este problema que aumenta a cada dia.
Se eu não fosse brasileiro, será que me conformaria com a crescente incompetência dos governos em lidar com a pobreza, limpeza e desprezo para com o patrimônio público que estou acostumado a ver?
Se eu não fosse brasileiro, será que estranharia o fato de não poder usar o celular em plena a Av. Faria Lima por medo de ser assaltado?
Se eu não fosse brasileiro, talvez não conseguisse entender porque perdemos tanto tempo debatendo a polarização política, e não os planos urgentes de recuperação da sociedade…
Se eu não fosse brasileiro, talvez questionasse a inoperância das autoridades em lidar com os mais de 80 mil moradores de rua que atualmente habitam nossa cidade. Talvez não assistisse com tanta naturalidade nos noticiários os intensos tiroteios entre policiais, traficantes e milicianos, produzindo vítimas inocentes a cada dia.
Se eu não fosse brasileiro, possivelmente estaria estarrecido com tudo que um brasileiro comum presencia em sua vida cotidiana nas ruas, no transporte urbano, na televisão, nas mídias sociais…
Na verdade, todos nós somos impactados pelo nível de degradação social no qual vivemos. Em menor grau, quando estamos protegidos por nossa bolha socioeconômica, que nos dá a sensação de estarmos distantes de todos esses distúrbios. Mas o impacto acontece em um grau muito maior para todos aqueles que vivem o mundo “comum”, na verdade, a grande maioria dos colaboradores de nossas empresas.
O efeito do mundo externo em nossos julgamentos morais e reações emocionais é amplamente discutido no livro de Jonathan Haidt “A mente moralista: porque as pessoas boas são segregadas por política e religião”. Impossível dissociar nossas experiências sensoriais externas de nossa interpretação de fatos e, consequentemente, de nossas reações e opiniões.
Investimos em nossas empresas uma quantidade razoável de recursos em treinamento e programas de desenvolvimento, na suposição de que nossos colaboradores estarão imunes aos ruídos sociais que nos envolvem. Presumimos que fazem parte da mesma bolha que envolve a grande maioria dos empresários e executivos em posição de liderança. Um grande engano. Ao vivenciarem a degradação social de forma mais próxima e contundente, são afetados também de forma mais intensa e trazem no seu íntimo o efeito deletério dessa relação perversa.
De fato, pouco podemos fazer para resolver problemas tão profundos e abrangentes da sociedade, mas definitivamente o primeiro passo consiste em reconhecer que nossos colaboradores – e nós mesmos – somos, embora de forma diversa, em muito afetados pelo nosso meio.
Buscar o propósito da organização e criar um ambiente de alta segurança psicológica engajado em contribuir com a redução das desigualdades sociais no País são de fato ações que no longo prazo deverão forjar empresas de altíssima performance.
Não podemos acreditar que teremos empresas vitoriosas e saudáveis por muito tempo em um ambiente social doente e em degradação. Temos que começar a olhar o nosso entorno com a indignação de um estrangeiro desacostumado da nossa realidade, e não mais com o conformismo de quem prefere não enxergaro óbvio.
Muito para além dos esforços básicos do “ESG”, nossas empresas precisam se organizar em torno de uma agenda de criação de valor social, e não apenas de valor econômico. Enfim, nós somos brasileiros e é aqui que devemos construir nosso futuro.
Jorge Sant’Anna é diretor-presidente e cofundador da BMG Seguros e membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Bancos