Economia

“O governo gastou dois anos olhando apenas a arrecadação”, diz economista Sergio Valle

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Sergio Valle: "O governo também é parte da história, está fazendo com que essa inflação não ceda como poderia" (Crédito: Divulgação)

Por Marcos Strecker

RESUMO

● Desde a posse do presidente Lula, o economista Sergio Vale tem alertado para as consequências do desequilíbrio fiscal
● Para ele, se o governo tivesse feito um ajuste mais forte de partida, além das medidas propostas no Arcabouço Fiscal, o dólar e a inflação não estariam tão pressionados

 

O economista Sergio Valle acha que o crescimento nos últimos três anos foi muito afetado pelo preço em alta das commodities e pela expansão das safras do agronegócio. Além disso, os gastos do governo, responsáveis em boa parte pela expansão, também terão menos espaço. São fatores que não devem se repetir mais. Além disso, a alta dos juros, determinada pelo Banco Central para conter a inflação, também vai ter impacto no crescimento, o que deve afastar o PIB da alta de 3% registrada nos últimos anos. O especialista acha que o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, manterá a independência da instituição, mesmo que aja a tentação de baixar a Selic buscando um crescimento no ano eleitoral de 2026.

DINHEIRO — O pacote de cortes do Haddad será suficiente para reverter o desequilíbrio fiscal?
Sergio Vale — O ponto importante desse pacote é finalmente o governo ter entendido, depois de dois anos, que tem uma questão importante na estrutura de gastos que precisa ser observada. O governo gastou dois anos olhando apenas a arrecadação. O mercado sabia que toda a proposta que foi colocada no Arcabouço Fiscal não se sustentava. Desde o início se sabia que alguma mudança na meta ia acabar acontecendo. O governo não ia conseguir entregar aqueles números muito robustos que estavam sendo perseguidos apenas com a arrecadação. Era preciso ter um olhar mais cuidadoso na estrutura de gastos. Isso não aconteceu nos primeiros dois anos.

As medidas propostas reverterão a alta da dívida?
O governo está tentando fazer alguma coisa. O problema é que, dois anos depois, a dívida voltou a crescer. A gente tem um cenário em que estamos na metade da gestão e boa parte do governo tem resistência a fazer ajustes mais significativos. O que haverá de ajuste de gastos pela frente, nesse pacote, vai ser provavelmente insuficiente. Precisamos reestruturar os gastos de uma forma mais permanente, de longo prazo.

Quais seriam as medidas básicas?
A gente precisaria ter mudança de limites constitucionais em Saúde e Educação e desvinculação do salário mínimo da Previdência. São os itens centrais para a gente pensar numa estrutura de longo prazo mais adequada para o gasto público. Isso provavelmente não vai estar no pacote. Devem entrar outras coisas que são importantes em relação ao salário mínimo, como ficar dentro do teto de crescimento do gasto. São coisas importantes, mas não são suficientes hoje para estabilizar a dívida pública. A gente precisaria de uma superávit primário na casa de 2,5%. Estamos falando de um País que está com déficit estabelecido neste ano, e provavelmente também em 2025 e 2026, mais próximo de 0,5% do PIB. A gente precisaria na verdade de um ajuste de três pontos percentuais para cima em busca de uma estabilização da dívida. Estamos longe de alcançar isso neste momento.

O crescimento do PIB tem surpreendido positivamente. Por quê?
O crescimento que ocorreu nos últimos três anos, especialmente, foi uma composição de expansão muito forte das commodities. Houve um momento pós-pandemia de aumento muito forte dos preços internacionais, e a taxa de câmbio depreciou com intensidade. As safras foram muito boas, especialmente em 2023. Esse conjunto fez com que a gente tivesse níveis recordes de crescimento e de faturamento do setor. Consequentemente, isso ajudou no crescimento do PIB, especialmente do interior do País.

Essa expansão é sustentável?
Parte importante desse crescimento veio desse momento muito positivo que descrevi acima. A outra parte veio do impulso fiscal. Especialmente nos últimos dois anos, ocorreu um crescimento forte de transferências do governo. A expansão dos gastos públicos foi importante para gerar esse crescimento médio de 3%, que vimos neste período. Mas, quando a gente olha para a frente, esse forte empuxo fiscal não tem mais espaço para acontecer. As commodities dificilmente darão um impulso tão forte e vigoroso, como aconteceu no ciclo de 2020 até o início de 2023. A gente vai ter preços razoáveis ano que vem. O câmbio está bastante favorável às exportações. Haverá uma safra melhor no ano que vem. Mas, em termos de faturamento, não vamos chegar aos picos atingidos.

Os juros vão afetar a expansão?
Estamos caminhando para ter uma capacidade de crescer em torno de 2% do PIB, e isso muito puxado pelas commodities. Especialmente nos próximos anos, também teremos um impacto negativo da taxa de juros. Esse crescimento com intensidade também tem sido responsável em parte pela pressão inflacionária que estamos vivenciando. E a resposta disso tem sido o aumento de juros, que a gente está vendo ao longo deste segundo semestre. Ele vai continuar no começo do ano que vem e implicará também no crescimento menor em 2025 e 2026. Esses 3% de crescimento que a gente tem hoje vai ser difícil de sustentar sem mudanças mais profundas na estrutura macroeconômica. Especialmente na questão fiscal.

A inflação continua a ser uma ameaça?
A inflação no governo Lula está caminhando para ficar muito próxima do teto nos quatro anos. Foi assim ano passado. Ficou em 4,6%, o teto era 4,75%. Este ano está caminhando para ficar acima do teto. A gente vai ter uma inflação relativamente forte em novembro e também em dezembro, com alimentos e energia aparecendo no final do ano. A inflação deve ficar em torno de 4,7%, 4,8% este ano. Isso acaba impactando também em 2025. Acaba contaminando inicialmente a inflação do ano que vem, que vai ficar entre 4,0% e 4,5%, mesmo com o Banco Central subindo a taxa de juros. A Selic, que está caminhando para ficar próxima de 13% neste momento, é suficiente para conseguir manter essa inflação dentro da meta.

Mas isso acima do centro da meta…
Para o Banco Central efetivamente trazer essa inflação para 3%, que é a meta, ele precisaria ser mais agressivo com a taxa de juros. A gente está falando aqui de uma Selic que precisaria ir para 15%. Seria a forma de conseguir sinalizar para uma taxa de inflação de 3%. Acho que o Banco Central ano que vem não vai caminhar para ter uma taxa tão agressiva assim.

O Gabriel Galípolo, futuro presidente do Banco Central, vai conseguir manter a independência da instituição?
Acho que a próxima gestão do Banco Central terá independência, mas também não vai poder sair muito da cartilha. Não vai poder sair muito das regras, digamos assim. Diante de qualquer tentativa de mudança muito radical da taxa de juros, de forçar uma queda da taxa no ano que vem para ajudar no crescimento em 2026, o mercado rapidamente devolveria para o Banco Central uma expectativa de inflação muito maior e uma taxa de câmbio muito mais depreciada. Isso seria muito mais prejudicial para o crescimento em 2026 do que uma tentativa de forçar uma queda de juros. Então o Banco Central, de certa forma, está amarrado a fazer as coisas que são necessárias para conter a inflação.

O ponto importante desse pacote é finalmente o governo ter entendido que tem uma questão na estrutura de gastos que precisa ser observada

O dólar vai continuar em patamar elevado?
Essa pressão cambial que estamos vivenciando este ano tem repercussão na inflação, faz com que ocorra esse cenário de IPCA próximo do teto ao longo desses próximos três anos. O governo também é parte da história, está fazendo com que essa inflação não ceda como poderia. Se tivesse feito um ajuste bem mais significativo de partida, lá atrás, a gente estaria falando hoje talvez de um câmbio em que o dólar estaria hoje entre 4,50 ou no máximo 5 reais. Não estaria no patamar que vemos agora. Há aqui uma responsabilidade do governo muito grande pelo que aconteceu na economia.

O governo Trump também vai ajudar a manter o dólar em alta?
Na verdade isso já está acontecendo nos últimos dois meses pela possibilidade da vitória do Trump. A taxa de câmbio americana começou a apreciar com o aumento dos juros longos, com a percepção de que teria uma inflação vindo em 2025 com o pacote econômico que o novo presidente está montando. Essa percepção de risco se mantém, por mais que a escolha do Scott Bessent para ser secretário do Tesouro seja aparentemente positiva. Ele tem uma visão sobre a macroeconomia aparentemente correta, mas ao mesmo tempo tem uma posição parecida em sinalizações dadas anteriormente pelo presidente de que o aumento de tarifas é importante. E haverá corte de impostos. A economia em 2025 nos Estados Unidos vai se manter sob pressão, e essa pressão tende a fazer com que o juros se mantenham elevados por lá.

Isso afetará mais quais países?
Afetará as moedas emergentes mais depreciadas, os países que estão em mais dificuldade econômica. Os que estão em situação mais vulnerável, especialmente do ponto de vista fiscal, são aqueles que acabam sofrendo mais esse Impacto cambial. Quando a gente olha para a frente, junta o cenário fiscal brasileiro e um cenário internacional e americano em dificuldade por conta da política econômica do Trump, acrescentando o da China também, pode haver alguma depreciação acontecendo como resposta à guerra tarifária.

Como você viu a crise com o grupo Carrefour?
Isso que aconteceu é obviamente uma pressão interna da agropecuária francesa para tentar barrar o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Obviamente a reação aconteceria. Não faz muito sentido econômico achar que o Carrefour tomaria a atitude de boicote contra o agronegócio brasileiro e nada ia acontecer. A gente fez o caminho correto de responder a uma decisão bastante equivocada. Dada a guerra comercial que está ocorrendo hoje entre China e EUA, não há muita alternativa para a União Europeia a não ser fazer acordos econômicos com outros países. No caso do Mercosul, um acordo que está há mais de 20 anos em andamento, só faltam as decisões de cada país nos dois conjuntos para ser sancionado de vez. Essa é a pressão que os franceses estão fazendo em cima da União Europeia, mas o bloco econômico precisa fazer um acordo. É por conta da pressão que eles estão agindo. Vai ser interessante observar até onde vai a força da agropecuária francesa contra a União Europeia.

Dada a guerra comercial entre China e EUA, não há alternativa para a União Europeia a não ser fazer acordos econômicos com outros países

Você acha que o acordo Mercosul-União Europeia pode sair em dezembro, como fontes brasileiras afirmam?
Acho que por conta dos interesses dos dois lados isso vai acabar acontecendo. Pode ser que não seja tão rápido, agora em dezembro, por conta da resistência francesa. Mas acho que é inexorável.

O protecionismo do governo Trump vai prejudicar o Brasil?
No caso brasileiro, os EUA têm superarávit comercial. A conta é positiva para os americanos na balança comercial. Aplicar uma tarifa de exportação nesse caso é contraproducente do ponto de vista deles. Acho que deve impactar o Brasil ao longo dos próximos anos. A guerra comercial cada vez mais aproxima a economia brasileira da economia chinesa. A China conquistou um espaço cada vez maior no mercado dos emergentes em termos de exportação.