A profissionalização da vida

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Dante Gallian: "Colaboradores que, de forma alienada, atuam empresarialmente no ambiente extraprofissional comprometem não apenas sua própria saúde e a de seus entes queridos, mas em certo sentido a saúde da própria empresa" (Crédito: Divulgação)

Por Dante Gallian

A inda que haja muita gente que admire e celebre a atitude de certos “homens de sucesso” que, durante boa parte de suas vidas, declaram haver transformado seus escritórios em residência e vice-versa, não é pequeno o número de pessoas – acredito eu – que considera tal promiscuidade como algo nefasto. Apesar disso, principalmente depois do advento da internet e das novas tecnologias, não tem sido tarefa fácil encontrar uma justa medida entre o trabalho e a vida pessoal, familiar e social. Os efeitos desse desequilíbrio na saúde física, mental e existencial das pessoas já são bem conhecidos, e este tem sido um dos temas mais discutidos não só dentro como fora das empresas. O que eu gostaria de abordar neste artigo, entretanto, é um fenômeno colateral associado a esse problema, e que talvez ainda esteja um pouco negligenciado por parte dos psicólogos e analistas sociais. Refiro-me ao fenômeno da profissionalização da vida.

Como se não bastasse a invasão dos assuntos profissionais no tempo e no espaço antes sagrado do lar e da vida pessoal – mensagens em redes sociais e e-mails a desoras, em pleno final de semana etc. –, o que se observa atualmente de forma crescente é a contaminação dessa dimensão antes preservada da existência pelo modus operandi da vida profissional, da gestão corporativa. É cada vez mais comum ver a aplicação das técnicas e estratégias típicas da vida profissional, mormente do universo corporativo, na vida pessoal e familiar. Não falo aqui apenas dos justificáveis dispositivos de equilíbrio financeiro, mas da recorrência a procedimentos de gestão, como se uma família e a própria vida pessoal pudessem ser geridas como uma empresa, com suas atividades e tarefas devidamente controladas e planilhadas. Assim, assistimos ao triste espetáculo desumanizador da autogestão do tempo e, o que é pior, ao controle monitorado da vida dos filhos, avaliada segundo os critérios da produtividade e performance. Como aponta o filósofo coreano radicado na Alemanha Byung Chul-Han, em Sociedade do Cansaço, estamos gerindo as nossas vidas como se ela fosse um negócio e nos transformando em patrões de nós mesmos e das pessoas que vivem conosco por laços de sangue e afeto. Desta forma, muitas vezes, na melhor das intenções, trazemos para dentro de casa e para dentro das nossas próprias vidas a dinâmica patológica que arruína as relações e a saúde existencial de quem mais amamos.

Neste sentido, ao se pensar no desafio da humanização do ambiente de trabalho e na promoção da saúde existencial na vida profissional, os verdadeiros líderes e gestores devem levar em consideração não apenas o equilíbrio entre as dimensões da vida, como também essa problemática transferência da mentalidade performática para a vida pessoal e familiar. Colaboradores que, de forma alienada, atuam empresarialmente no ambiente extraprofissional comprometem não apenas sua própria saúde e a de seus entes queridos, mas em certo sentido a saúde da própria empresa. O caminho da saúde existencial passa por trazer a dinâmica humana e afetiva para dentro do trabalho, e não o contrário.