Artigo

Transformações silenciosas

Para François Julien, a filosofia ocidental tem sua ênfase na lógica, focando as mudanças como eventos discretos. O pensamento oriental enfatiza a intuição

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Jorge Sant’Anna: "Os fins passam a justificar os meios e, aos poucos, perdermos nossa capacidade intuitiva e o entendimento de que tudo está interconectado" (Crédito: Divulgação)

Por Jorge Sant’Anna

Como faço todos os anos, o início de janeiro é o momento que defino minhas metas para o ano que se inicia. Bem ao estilo executivo moderno, as metas devem englobar as diversas dimensões de minha vida e sobretudo serem objetivas, mesuráveis, claras, verdadeiros marcos. No entanto, neste final de ano, decidi reler, após 15 anos, o complexo e ao mesmo tempo revelador livro As Transformações Silenciosas (Silent Transformations), do filósofo francês François Julien. Para o autor, transformações silenciosas são processos que se desdobram ao longo do tempo e passam despercebidos por nós até que seus efeitos se materializam através de “eventos” notáveis.

Não percebemos nosso envelhecimento, muitas vezes somos incapazes de notar a deterioração de nossos relacionamentos, não percebemos que estamos adoecendo, ignoramos o desvio de comportamento de nossos filhos – embora estejamos muito próximos – e temos enorme dificuldade de sentir a degradação de nossa vida profissional. Somente nos damos conta da transformação quando algum “evento” ruidoso surge. Normalmente neste ponto já é tarde demais, e então saímos do modo de ajuste para o modo controle de danos. Enfim, temos uma enorme dificuldade de ver, perceber o processo. Estamos sempre focados no resultado, nos “eventos”.

Julien debate as diferenças entre as abordagens filosóficas ocidentais e orientais, notadamente a filosofia chinesa, no entendimento e percepção das mudanças que ocorrem no mundo e em nossa vida e por que não conseguimos perceber frequentemente as transições sutis e graduais que ocorrem na nossa realidade.

Para Julien, toda base da filosofia ocidental desde Platão e Aristóteles tem sua ênfase na lógica e no raciocínio, focando as transformações como eventos discretos, enquanto o pensamento oriental enfatiza transições como processos contínuos, tendo como componentes fundamentais a intuição e a interconexão entre todos os acontecimentos. Definitivamente, estamos muito menos preparados para capturar as “transformações silenciosas”.

Nosso organismo, por sua vez, também faz a sua parte, dificultando a capacidade de percebermos pequenas variações. Nossos sentidos usam a “percepção logarítmica”, isto é, uma grande variação no impulso externo provoca uma pequena variação na percepção no nosso cérebro. Desta forma, nossos sentidos descartam variações de intensidades sonoras, por exemplo, que são desprezíveis como forma de proteção. Tudo nos leva a ignorar transições sutis, e focamos em grandes eventos.

“Em nossas vidas pessoais e em nossas empresas, perseguimos o tempo todo os “eventos” e deixamos de perceber a jornada”

Em nossas vidas pessoais e em nossas empresas, perseguimos o tempo todo os “eventos”, marcos discretos. Estamos atrás de market share, rankings, prêmios, posições, reconhecimento e números. Nós nos embrenhamos em uma cruzada obstinada em busca de um “to be” desconhecido – que idealizamos como sucesso – e deixamos de perceber a jornada, o processo.

Com esta visão obliterada, aos poucos deixamos de capturar o aprendizado de nosso processo de mudança, de transformação. Os fins passam a justificar os meios e, aos poucos, perdermos nossa capacidade intuitiva e o entendimento de que tudo está interconectado.

Obviamente, temos que ter nossas metas definidas de forma clara, temos que determinar nosso “to be”, mas é também preciso ter em mente que o que nos faz vitoriosos não é o que conseguimos, mas sim como conseguimos, quanto valor criamos neste processo, quão sustentável é esta nova posição.

Pense nisto e esteja presente, atento, a cada transição nos processos que conduzem sua vida neste ano. Saiba que cada transição mínima importa e compõe o nosso quadro final.

*Jorge Sant’Anna é diretor-presidente e cofundador da BMG Seguros e membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Bancos