DeepSeek: a startup chinesa que abalou as big techs vai mudar o futuro da IA?
A pequena DeepSeek conseguiu bater gigantes americanas utilizando em sua tecnologia de Inteligência Artificial uma fração dos recursos investidos pelas big techs. Isso virou um problema tecnológico, econômico e político para os EUA

Com sua IA eficiente, a DeepSeed pulou para a liderança entre os aplicativos baixados nos EUA (Crédito: DOMINIKA ZARZYCKA)
Por Marcos Strecker
Há dois anos, o planeta foi sacudido pelo lançamento do ChatGPT, a ferramenta que tornou realidade o uso da Inteligência Artificial (IA). O ChatGPT, produzido pela então desconhecida OpenAI, traduziu para o mundo concreto pesquisas puramente acadêmicas – com resultados palpáveis e de forma acessível. Eles já são usados em larga escala, no dia a dia de todos. Elaborar textos complexos, dialogar, criar músicas e imagens, prever doenças ou desenvolver medicamentos revolucionários são apenas algumas das aplicações desse universo em plena expansão. A Inteligência Artificial é considerada, com razão, a maior mudança tecnológica desde a popularização da internet, nos anos 90. E já está reproduzindo os seus efeitos na economia e na política, sem contar na mudança de hábitos da população.
Na última semana, uma pequena startup chinesa abalou os alicerces dessa corrida tecnológica, com repercussões na geopolítica e na economia do planeta. Ela conseguiu replicar os resultados da OpenAI utilizando uma fração dos recursos da rival americana e um número muito pequeno de processadores da Nvidia, necessários para o funcionamento da IA. O DeepSeek-R1 consumiu apenas US$ 5,6 milhões e 2 mil chips, uma quantidade de processadores bem menor do que as big techs americanas utilizam. Esses feitos foram divulgados em um paper de 22 páginas, o que funcionou como um rastilho de pólvora e catapultou a DeepSeed para a liderança entre os aplicativos baixados nos EUA.
O prodígio por trás da proeza é Liang Wenfeng, nascido em 1985.
● Aos 30 anos, ele fundou a High-Flyer, empresa de investimentos que se especializou no uso de IA no mercado de ações.
● Em três anos, multiplicou os ativos da companhia por dez, chegando a R$ 10 bilhões.
● Enquanto isso, desenvolvia a DeepSeek comprando chips da americana Nvidia.
● A exportação desses processadores foi limitada pelo governo americano para impedir avanço da China neste terreno.
● A estratégia falhou. Pelas mãos de um nerd chinês, e não por gigantes locais como ByteDance e Alibaba (esta anunciou que vai lançar um modelo de IA superior ao da DeepSeek).
As ações despencaram nas bolsas. Apenas na segunda-feira (27), o valor de mercado das gigantes tecnológicas americanas caiu US$ 1 trilhão. A Nvidia, “estrela” da nova tecnologia, desabou. Perdeu US$ 600 bilhões em um dia, a maior queda registrada na história do mercado acionário americano, depois de atingir US$ 3,44 trilhões apenas uma semana antes (já tinha ultrapassado a Apple como empresa mais valiosa dos EUA).
Na segunda (27), suas ações levaram um tombo de 16,97%. Um dia depois, haviam recuperado 5,7% do valor, mas poucos apostam que sua trajetória meteórica será mantida intacta (ela atingiu a marca de US$ 2 trilhões em 2024, apenas nove meses depois de conseguir ultrapassar a barreira de R$ 1 trilhão).

O feito da DeepSeek é um terremoto para o plano de negócios das big techs americanas. Até agora, havia o consenso de que o desenvolvimento da IA demandaria um número cada vez maior de chips, que precisariam ser armazenados em data centers descomunais, consumidores de energia em níveis inéditos. Isso levou as empresas a levantar financiamentos bilionários, assim como despertou uma corrida pela construção desses complexos ao redor do mundo, especialmente em países capazes de fornecer energia a um custo baixo, de preferência renovável (o Brasil se beneficia disso, atualmente).
Para se ter uma ideia das cifras envolvidas, apenas uma iniciativa recém-divulgada nos EUA, o projeto Stargate, que vai unir gigantes como OpenAI, o banco japonês Softbank, a Microsoft, Oracle e a própria Nvidia, deve consumir recursos da ordem de US$ 500 bilhões. Mas uma pequena startup chinesa provou que é possível fazer mais por muito menos.
US$ 1 trilhão
É o valor de mercado que as big techs perderam na segunda-feira (27)
A notícia também tem enormes repercussões políticas – por isso, tem causado muitas dúvidas, além de despertar teorias conspiratórias. A novidade coincidiu com o retorno à Casa Branca de Donald Trump (no último dia 20), que elegeu a corrida pela IA como fundamental para a manutenção da hegemonia global americana na economia e na tecnologia. Não à toa, os bilionários (ou trilionários) das “sete magníficas” (big techs) desembarcaram em peso em Washington para a posse do republicano. Esse casamento de conveniências foi igualmente abalado. Trump declarou apenas que o anúncio da DeepSeed foi um “alerta para a indústria americana”.
Ele tem uma briga difícil pela frente. Desde o seu primeiro mandato, Trump está tentando transferir para mãos americanas o Tik Tok, rede social chinesa que atualmente domina as redes sociais. A falta de comprador quase levou ao seu encerramento no último dia 19. Trump não deseja que os EUA se tornem vulneráveis, pois informações estratégicas estariam acessíveis pelos chineses (o governo de Xi Jinping nega).
Mas decidiu adiar esse desfecho logo que assumiu, pois empreendedores e companhias americanas já são dependentes do Tik Tok para seus negócios. A restrição de venda de chips sensíveis para os chineses, política acelerada por Joe Biden, também mostrou suas limitações. Os “superchips” em desenvolvimento pela Nvidia poderão ser batidos, aparentemente, por similares menos sofisticados, e em menor número, fabricados em solo chinês.

O “milagre” conseguido pela DeepSeek foi escrutinado nos últimos dias pelos especialistas, em busca de “buracos” ou falhas, como era de se esperar.
● Aparentemente, sua programação de fato é superior e consistente, desenvolvida por técnicos e engenheiros recrutados pela companhia em grandes universidades locais (Pequim, Tsinghua e Beihang).
● A OpenAI acusou a empresa chinesa de ter utilizado parte de seu modelo.
● Mas essa alegação também é fragilizada pelo próprio histórico da OpenAI, acusada por veículos de imprensa, como o jornal New York Times, de se apropriar de seu conteúdo sem autorização, num caso de infração de propriedade intelectual (a companhia de Sam Altman nega).
● A companhia chinesa também é questionada pelo crivo ideológico imposto pelo PC chinês em toda a sua indústria. Quem buscou no aplicativo da DeepSeek informações sobre tópicos sensíveis ao governo comunista, relacionados a direitos humanos, minorias étnicas e repressão política, obteve respostas evasivas.
● O software também parece calibrado para “se corrigir” automaticamente ao ser questionado sobre temas proibidos no país.
Tudo isso ainda precisará de mais avaliação, já que o acesso ao usuário comum passou a ser quase impossível pelo congestionamento causado pela grande procura, assim como por um suposto ataque hacker aos computadores da empresa.

A indústria tecnológica americana também ficou incomodada com a opção de DeepSeek em utilizar código aberto em seus programas. Ou seja, seu aplicativo está disponível para todos avaliarem, reproduzirem e aperfeiçoarem. Ironicamente, parte do programa da DeepSeek foi desenvolvido com códigos também abertos da Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp).
A companhia de Mark Zuckerberg optou por disponibilizar livremente seus recursos de IA, ainda que tenham custado caro, para ganhar terreno contra a rival OpenAI, bancada pela Microsoft. Essa aposta agora pode se pagar, já que poderá incorporar as inovações da chinesa, ganhando um terreno na inovação que não via desde que apostou todos as fichas no desenvolvimento do seu metaverso, que fracassou. Estrategistas de tecnologia nos EUA se preocupam que a China poderá dar um novo salto, superando os EUA na tecnologia do futuro.

O multibilionário mercado de capital de risco também está em polvorosa. Até hoje, investidores se concentravam em companhias de IA que representavam “modelos fundacionais”, ou seja, empresas robustas focadas em criar produtos únicos e protegidos por propriedade intelectual, capazes de serem dominantes em seus ramos. Como a DeepSeek conseguiu os mesmos resultados das líderes com uma tecnologia mais barata, a corrida pela IA pode se tornar um jogo disputado em pé de igualdade por empresas pequenas e médias.

O anúncio dos últimos dias foi chamado de “momento Sputinik”, por lembrar o avanço inesperado e revolucionário dos soviéticos ao lançar seu satélite tomando a dianteira da corrida espacial, em 1957. Isso forçou os EUA a redobrarem seus esforços e triunfarem na Lua, dez anos depois. Mais correto seria relacionar o momento atual com o estouro da bolha da internet, no início dos anos 2000. Muitos investimentos evaporaram na época, e a derrocada das pontocom acabou dando lugar a uma internet comercial mais madura, ainda que imperfeita e menos democrática. O choque atual mostra que a Inteligência Artificial ainda está no seu início, e sua história ainda está por ser escrita.