Finanças

Crédito, débito ou polêmica?

Fintechs que tentam disputar mercado de antecipação de recebíveis enfrentam obstáculos diante de uma suposta prática de grandes adquirentes, que estariam inibindo a concorrência e elevando custos a lojistas

Crédito: Getty Images

A guerra das maquininhas: com todos os problemas, Brasil tem uma das maiores redes de aceitação de cartão no mundo (Crédito: Getty Images)

Por Hugo Cilo

Por trás do simples ato de passar o cartão, há uma intensa e invisível disputa entre empresas do mercado de meios eletrônicos de pagamento e antecipação de recebíveis. Quase invisível. Isso porque nos últimos dois anos têm entrado em vigor, gradualmente, novas regras do Banco Central no que diz respeito ao registro de recebíveis de cartão, pela qual todas as transações realizadas pelos lojistas on-line ou nas famosas maquininhas devem ser registradas em uma das adquirentes autorizadas a funcionar. A finalidade é que essas transações possam ser utilizadas pelos lojistas como forma de pagamento a seus fornecedores, concedidas como garantia em operações de crédito ou antecipadas com qualquer player do mercado, não apenas com a credenciadora que oferta a maquininha e processa a transação – como Cielo e Rede.

E para aprimorar a sistemática ao conferir transparência, segurança e promover a competitividade, em dezembro de 2022 o Banco Central publicou a nova resolução nº 264, que padroniza os nomes das tarifas e as formas de cobrança pelos serviços prestados pelas registradoras de recebíveis de cartão. Objetivo: simplificar os processos, democratizar o acesso a novos entrantes e reduzir os custos de operação. “A resolução define uma racionalidade econômica para o uso de recebíveis de cartão”, afirmou João André Pereira, chefe do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro (Denor) do Banco Central.

Há controvérsias

No dia a dia das empresas, no entanto, não é bem isso que tem acontecido. Ocorre que, ainda hoje, não foi estabelecida a cultura pelos pequenos empreendedores de acesso e utilização de seus recebíveis.

De acordo com especialistas, algumas práticas têm prejudicado o processo de abertura do mercado. Nos bastidores, as grandes credenciadoras — também chamadas de adquirentes — estariam criando obstáculos para que lojistas tenham acesso a taxas mais baixas de outros players do mercado. O resultado dessa suposta prática é menos competição e custos mais elevados para os pequenos empresários.

Ariel Orkov, diretor da Spike (Crédito:Divulgação Spike)

“Se as informações fossem claras, permitiriam ao lojista optar por contratar MDR com ou sem antecipação, comparando as taxas do mercado.”
Ariel Orkov, diretor da Spike

Um dos métodos utilizados pelos adquirentes funciona da seguinte forma: se o lojista que possui uma determinada maquininha decide buscar novas opções no mercado, a adquirente que até então executava as antecipações passa a cobrar mais pelo mesmo serviço ou simplesmente deixa de antecipar.

Ou seja, assim que o empresário desativa a função de antecipação automática ou decide que parte dos seus recebíveis será utilizada de outra forma para pagamento a fornecedores ou obtenção de crédito, o custo para esse empresário dispara.

No fim do dia, o pequeno empreendedor desiste de tentar uma nova opção, com receio de ter seus custos de operação aumentados ainda mais, impactando seu fluxo de caixa.

Não bastasse a questão dos custos, adquirentes costumam trabalhar com um modelo de precificação chamado de “MDRzão”, que embute em uma única taxa os custos de MDR (processamento) e antecipação.

Uma vez que, diferentemente de uma contratação qualquer de financiamento em que existe a informação clara de CET (Custo Efetivo Total), nesse caso não existe qualquer informação ao lojista de qual o custo de antecipação e qual o custo do MDR.

“Dessa forma, os lojistas não entendem qual o real custo de antecipação, e, portanto, têm dificuldade em comparar com outras opções de antecipação de outros financiadores. Assim, eles têm dificuldades para sair do modelo, e quando saem, tem sua taxa de MDR proporcionalmente aumentada”, disse Ariel Orkov, diretor da Spike, plataforma de recebíveis de cartão.

“Se as informações de MDR e taxa de antecipações fossem claras, permitiriam ao lojista optar por contratar MDR com ou sem antecipação de forma simples e transparente, possibilitando a comparação da sua taxa com as demais opções do mercado.” Pelos cálculos da Spike, os custos de antecipação — que variam de 1,2% a 3% ao mês, a depender do prazo e do parcelamento — ficam até 60% mais caros com a falta de competição.

Bernardo Vale, CEO da Marvin (Crédito:Divulgação )

“A desinformação é grande. Plataformas de adquirência estão se aproveitando do seu poder econômico para evitar a competição.”
Bernardo Vale, CEO da Marvin

A luta dos grandes adquirentes contra a abertura do segmento se explica nas cifras do setor. O mercado de crédito e de antecipação movimenta cerca de R$ 3 trilhões por ano no Brasil, segundo o Banco Central, o equivalente a cerca de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) e mais do que o PIB da Suécia ou da Bélgica no ano passado.

Por isso, na avaliação do empresário Bernardo Vale, CEO da Marvin, fintech que libera para o lojista o saldo das maquininhas de cartão de crédito para compras com fornecedores, a prática dos grandes adquirentes é como um “cabo de guerra que tem sido levado ao extremo” mesmo sob uma regulamentação mais moderna do Bacen.

“Esse ‘bad behavior’ ainda é extremamente presente. Muitos lojistas não conseguem sequer desligar a antecipação automática”, afirmou Vale. “A desinformação ainda é grande. As plataformas de adquirência lançam a antecipação como operação de crédito, o que causa dúvida no lojista. Estão se aproveitando do seu poder econômico para evitar a competição.”

Para Mareska Tiveron, advogada especialista em mercado financeiros e startups, sócia do escritório Viseu Advogados, o maior desafio do Banco Central será garantir aos lojistas a titularidade de seus recebíveis e o acesso aos dados de suas agendas financeiras, o que antes ficava em posse das credenciadoras.

“É preciso ficar claro que as novas resoluções do Banco Central vieram para democratizar o mercado de recebíveis”, disse, durante o 4º webinar da fintech Monkey ‘Agenda Bacen, construindo um novo mercado de pagamentos’, no mês passado. “Antes, os lojistas ficavam muito atrelados a empréstimos com os bancos e acabavam se acostumando com uma única instituição. Agora, a prerrogativa da nova regulamentação do BC é que ele [o lojista] pode buscar crédito na entidade que quiser.”

60% é quanto o lojista pode estar pagando a mais pela suposta prática das adquirentes

Contraponto

Procurada pela reportagem, a Cielo, líder do mercado de adquirência, não respondeu até o fechamento desta edição. A Rede, do Itaú, infomou por nota que dá liberdade aos seus clientes para que escolham a melhor forma de utilizar seus recebíveis, que podem ser negociados como garantia em qualquer instituição financeira ­— mesmo que tenam a antecipação automática contratada na Rede.

“Reforçamos nosso compromisso com a transparência e em oferecer a melhor relação custo-benefício para nossos clientes, que em todo o processo têm clareza em relação às taxas e tarifas pagas por produto e têm autonomia para escolher as condições que mais atendem à realidade do seu negócio.”

A Abecs, associação que representa o setor de meios eletrônicos de pagamento, também se manifestou por meio de nota. A entidade afirmou que não interfere na política comercial das empresas associadas, o que engloba definição de preços, estratégias de negócio, entre outros aspectos concorrenciais.

“Vale ressaltar que o setor, regulado desde 2013 pelo Banco Central do Brasil, possui um ambiente concorrencial aberto e saudável, que possibilita o surgimento de novos modelos de negócio, gera mais eficiência e reduz custos para todo o sistema, beneficiando o lojista e o consumidor”, disse a nota.

A Abecs afirmou ainda que, de acordo com dados do BC, a taxa média de desconto (MDR) praticada no mercado vem caindo de maneira constante nos últimos dez anos, chegando a 1,1% no débito e 2,3% no crédito no quarto trimestre de 2022, contra 1,6% e 2,8%, respectivamente, em 2012. “São reduções importantes no custo para o varejista aceitar cartão no Brasil”, afirmou.

A livre competição, ainda segundo a associação, também tem favorecido o surgimento de inovações tecnológicas, que aumentam a eficiência e a segurança no ponto de venda (tanto físico quanto on-line), e a democratização dos meios digitais em todas as esferas sociais e regiões do País – o número de maquininhas de cartão cresceu de 3,4 milhões em 2010 para mais de 20 milhões em 2022, uma das maiores redes de aceitação do mundo.