Patricia Mota Guedes

Entrevista

Patricia Mota Guedes, superintendente do Itaú Social

“Ou aceleramos na educação ou perderemos de vez o bônus demográfico”

Claudio Gatti

“Ou aceleramos na educação ou perderemos de vez o bônus demográfico”

Superintendente do Itaú Social, Patricia Mota Guedes aposta na multiplicação das boas práticas para tracionar a educação pública básica. Segundo ela, a chave é a convergência

Editora Três
Edição 04/08/2023 - nº 1336

Por Edson Rossi

Para muita gente, a educação básica pública no Brasil só terá saída pela implosão. Para outros, nem assim. Para muitos, não se trata de pouco dinheiro, mas de pouca gestão (6% do PIB mais que OCDE e média global). Nesse balaio, Patricia Mota Guedes é oposto e aposto. É debate e acréscimo. A superintendente do Itaú Social, vertical da Fundação Itaú que mira a pré-escola (faixa dos 4 e 5 anos de idade) e os anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano), assumiu o cargo no fim de 2022. E no meio de posições tão antagônicas nesse campo, ela é voz de consenso. O que não significa letargia ou fragilidade. Sabe que sem diálogo e a compreensão de que se trata de um ecossistema nuclear para o Brasil dificilmente daremos um salto do fosso em que nos encontramos. Perguntada sobre o que tira seu sono, ela responde de forma definitiva: “A mesma coisa que me motiva”.

DINHEIRO — Posso afirmar que sem o papel de fundações, como o Itaú Social, nossa educação pública de base está condenada?
PATRICIA MOTA GUEDES — Não vamos e nem podemos substituir o papel das políticas públicas. Por mais recursos que uma fundação tenha, no Brasil ou em qualquer lugar no mundo, ele não deve assumir o papel do Estado. Nem pode.

Há um limite?
O Estado Democrático de Direito pressupõe a articulação da sociedade civil, do engajamento das comunidades escolares, dos governos. E no Brasil ainda temos outro desafio, o do sistema federativo.

Foi essa complexidade que levou ao redirecionamento feito no fim de 2022 nas faixas de atuação do Itaú Social?
Sim. É um exercício difícil, o das escolhas. A gente falou, ‘tá, onde faz mais sentido colocar foco?’ Porque a educação básica é um universo, vai da creche ao ensino médio. Olhando os dados, as evidências, nos perguntamos onde estão os maiores gargalos, as lacunas de políticas públicas, os piores desempenhos de aprendizagem.

O foco em pré-escola e do 6º ao 9º significa que nenhum projeto pro espaço intermediário (1º ao 5º ano) vai ser feito?
Novos projetos não. Mas assumimos o compromisso de continuar todos os que tínhamos em editais, e as parcerias com secretarias. A gente trabalha o ciclo da gestão [os atuais mandatos municipais vão até o fim do ano que vem].

Afinal, de quem é a responsabilidade por essas suas duas faixas (pré-escola e anos finais do ensino fundamental)? Prefeituras, governos estaduais?
Essa é a pergunta de milhões. Porque hoje há muita bola dividida. Metade das matrículas do 6º ao 9º ano está com municípios, a outra metade com agentes estaduais, e ainda varia. Por exemplo, em estados no Sul praticamente 80% ou mais estão com o Estado. Já no Nordeste, está praticamente universalizado nos municípios.

Essas desconexões inviabilizam estratégias voltadas para a educação, não? O que fazer?
Fortalecer o regime de colaboração entre estados, municípios e governo federal. Porque os municípios mais pobres têm menos recursos. Então, mesmo nos estados onde a maior parte das matrículas está com os municípios, a responsabilidade, o papel do governo do estado, não diminui.

O que é preciso fazer para provocar essa mudança de atitude entre os governos?
Pautar os anos finais como objeto extremamente necessário da política pública. Por que os governos anunciam programas de alfabetização, anunciam preocupação com creches, o ensino médio está muito na pauta… Só que do 6º ao 9º ano… Há evidências de que não adianta apenas melhorar a fase de alfabetização porque isso não se reflete automaticamente na melhoria dos anos finais, não é algo garantido.

“Nos anos finais do ensino fundamental [estágio anterior ao ensino médio] é quando temos aumento da reprovação, da repetência, do abandono”

Esses anos finais são um gargalo?
Do 6º ao 9º ano é que a gente tem queda de desempenho em língua portuguesa e matemática — 85% dos estudantes concluem o último ano [do ensino fundamental] sem conhecimento básico em matemática. É quando temos aumento de reprovação, de repetência, de abandono… A gente fez alguns estudos acompanhando crianças que começaram a escola em 2007 e ao final do nono ano no Brasil metade delas passou por alguma experiência de reprovação, abandono, repetência. Então, o primeiro ponto é a gente poder realmente colocar na pauta e trabalhar com secretarias que topem realmente desenhar, implementar políticas e programas.

Admiro seu otimismo, mas são quase 5,6 mil cidades, 27 governos estaduais (que mal se entendem pela Reforma Tributária).Uma bela encrenca, não?
A gente não tem a responsabilidade do governo, né? O que pretendemos, através do trabalho com algumas secretarias estaduais, municipais, é trazer experiências exitosas que possam inspirar outros. Eles se tornam propagadores, mas a partir de uma política e de um programa deles. Não é o programa do Itaú Social.

Quase um trabalho de missionário…
Pra mudar os resultados de aprendizagem, né? Porque essa exclusão que acontece quando falo em reprovação, repetência, abandono, se você olha [no detalhe] é mais cruel ainda. Porque é pior entre crianças pretas. A reprovação, a repetência, têm a marca da desigualdade racial. E afeta mais os meninos. E precisamos lembrar que esses estudantes que chegam ao 6º ano estão entrando na adolescência, que é um baita desafio, mas é uma baita oportunidade também. De poder trazer currículos mais inovadores, que engajem os adolescentes. É preciso pensar como esse professor está sendo preparado, o diretor de escola está sendo preparado, pra ter uma escola que escute os adolescentes. E aí traga soluções com a participação deles.

Esse é outro nó no tema, o professor.
Há uma desistência muito grande nas licenciaturas no Brasil que formam os professores especialistas. É algo maior do que em outras carreiras. Sem falar que aqueles que concluem não necessariamente vão dar aula. A gente tem licenciados em matemática, por exemplo, que vão trabalhar em empresas. A carreira docente não é das mais atrativas. Aliada a outro desafio: dependendo do município ou estado, vai estar em mais de uma escola, e pode ter de 300 a 500 alunos sob sua responsabilidade.

Então é um problema de tempo dedicado aos alunos. Mas e o salário?
Também. Mas não é só isso. Foi feita uma pesquisa nacional com professores de escolas públicas em 2018 e no final do ano passado. Claro que carreira conta. Mas há também duas coisas: a primeira é que o professor quer ser envolvido no desenho das políticas públicas; a segunda mostra que somente 35% dos professores acreditam que a Secretaria de Educação realmente conhece a sua realidade na escola. Por isso há oportunidades para estados e municípios que se aproximam dos professores, em que funcionários das secretarias visitem as escolas. Sei que falo algo que parece muito básico. Mas não é a realidade. As secretarias que conseguiram virar a chave fizeram algo assim. Apoio às escolas.

Perdoe a pergunta longa, mas necessária. Quando vejo licitação viciada de tentativa de compra de laptops por meio do FNDE, ou compra indecente de kit robótica, ou mesmo essa voracidade que políticos têm de querer mais dinheiro na educação, sempre penso: ‘Fica mais fácil desviar ali, afinal, que brasileiro vai dizer que não precisa de dinheiro pro ensino?’. A gente destina 6% do PIB, mais que a média dos países da OCDE e a média global. Não se trata de ter mais dinheiro, mas de ter escolhas sobre o que fazer com o dinheiro. Você concorda com esse meu cinismo?
Concordo que gestão e fortalecimento da capacidade de gestão são estratégicos. A gente trabalha com as secretarias municipais e estaduais sobre isso. Agora, é preciso lembrar que a gente tem aqui um passivo histórico e um tamanho de desafio muito maiores que os dos países da OCDE. Países da OCDE deixam a criança estudando por sete, oito horas. A gente deixa de quatro a cinco horas. Nossa estrutura precisa sim se organizar pra ter escolas de tempo integral, professores com dedicação integral. Um desafio que exige mais recursos.

Então se trata de mais dinheiro também?
Precisamos acelerar muito para reduzir as desigualdades. Então, parte da discussão passa por ter recursos adicionais para quem precisa. A pandemia mostrou isso pra gente de uma forma escancarada.

De forma generalizada?
Por região, por nível socioeconômico das escolas… Existe uma questão de mais recursos pra estratégias de redução de desigualdade. Além disso, a gente precisa avançar num tempo muito mais curto.

“Nossas desigualdades econômicas se encontram e se entrelaçam com as desigualdades educacionais, em especial com crianças pretas”

E por que você insiste que o tempo é curto?
A nossa janela de oportunidades com o bônus demográfico está acabando. É 2030. Então, a gente precisa pensar o quanto se mobilizar para ter recursos e mais qualidade de gestão pra alavancar a educação e não perder essa janela de oportunidade.

Vocês trabalham com metas temporais?
Usamos as metas do Plano Nacional de Educação, que vai até 2024. Olhamos um déficit, que é o da desigualdade, que não se modificou muito ao longo dos últimos 15 anos. Enquanto País a gente precisa olhar essa agenda sistêmica.

Mas estamos longe disso, né?
A gente vê que há um longo caminho nos anos finais. Tem que ser algo com força de pactuação nacional. Porque temos 15% dos estudantes que não dominam matemática no 9º ano. ‘Vamos dobrar esse número!’ OK, vira 30%… O que é 30%? Então tem que realmente ser uma concertação nacional, um grande arranjo.

E o poder público?
A gente vai pactuando no planejamento estratégico. Por isso a nossa preocupação em deixar capacidade instalada. Ou seja, mesmo havendo mudança de governo — e que bom, faz parte da democracia —, olhar para o que se enraíza nas escolas. O além da política: o que é recebido por professores, diretores de escola, como algo que realmente vale ser feito e continuado.

E o resultado a quem importa (os estudantes)? Nossa desigualdade educacional supera a econômica?
Elas se encontram muitas vezes, e reforçam mecanismos de exclusão. Mas mesmo em escolas de baixo nível socioeconômico, ou em regiões mais pobres, você tem diferenças de desempenho e de reprovação [mais acentuadas] em cima de questões de cor. Por exemplo, 60% dos estudantes brancos conseguem chegar ao 9º ano sem qualquer experiência de reprovação ou abandono. Entre os pretos é 40%.

O que fazer?
Existe uma discussão sobre desigualdade que precisa ir além do currículo. Desigualdade que tem a ver com distribuição de recursos, com a falta de políticas. Perguntarmos por que há meninos pretos aqui que repetem mais que os brancos? Temos práticas que excluem. Não é só pelo nível socioeconômico, mas também por cor. E no caso de gênero a gente vê as meninas se distanciando da matemática conforme os anos de estudo avançam. Em especial com meninas pretas. Essas desigualdades se encontram e se entrelaçam.