Os primeiros passos de meu período “salvático”
Diferentemente do que ocorre nas cinco fases do luto, em que primeiro vem a negação e por fim a aceitação, entrei direto no modo barganha para atingir meus objetivos
Até para o leitor habituado a acompanhar as aventuras enológicas que relato regularmente no blog Degustando Vinhos, publicado no site da IstoÉ Dinheiro, é impossível imaginar a quantidade de garrafas abertas e de taças provadas nessa atividade. Eu mesmo não saberia dizer ao certo. Só sei que tem sido muito vinho, principalmente desde o início da pandemia, e quase sempre em almoços e jantares com bastante comida.
Sempre confiei nas palavras de William Blake, para quem o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Mas há um pedágio nesse trajeto. Para mim, a conta chegou com o resultado dos exames de sangue a que fui obrigado a fazer por ordem médica recentemente. Se você está se perguntando qual o sentido de algo tão pessoal estar exposto aqui, na página que encerra uma revista dedicada à economia, às finanças e aos negócios, peço que leia até o fim para ter a resposta.
Os resultados de meus exames se assemelham aos obtidos pelo protagonista do documentário Super Size Me – A Dieta do Palhaço, de 2004. No filme, Morgan Spurlock demonstra como em apenas um mês a ingestão contínua de calorias e gordura em refeições feitas exclusivamente na maior rede global de fast-food alterou sua saúde.Suas taxas de açúcar, colesterol e triglicérides passaram de níveis normais a alarmantes, além de uma indesejada infiltração de gordura no fígado. Pois é bem esse meu quadro. E assim como ocorreu com Spurlock, minha situação foi agravada pela baixa atividade física. Não que eu seja sedentário, mas a falta de regularidade em praticar qualquer esporte ou exercício aeróbico tem contribuído para elevar meu índice de massa corporal (IMC) para o limite da obesidade. Isso precisa ser revertido com urgência.
Além das consultas com endocrinologista e nutricionista, comprei o livro Fígado Saudável, de Anthony William, cujas primeiras seis páginas reúnem frases elogiosas ao autor assinadas por celebridades como Robert De Niro, Gwyneth Paltrow, Naomi Campbell e Pharrell Williams. Todos afirmam ter se beneficiado das recomendações do médico. Espero me juntar a eles, mesmo sabendo que nem a atriz, nem a modelo e nem o rapper precisaram perder peso como eu. De Niro, sim. Ele engordou 20 quilos para interpretar Al Capone em Os Intocáveis (1987), de Brian de Palma. Pouco tempo depois, apareceu todo saradão no remake de Cabo do Medo, dirigido por Martin Scorsese.
De Niro engordou e emagreceu porque seu trabalho exigia. Assim como minha rotina no papel de crítico de vinhos contribuiu com meu regime de engorda — que exigirá agora um período “salvático”.
Ouvi esse trocadilho de um amigo que estava muito acima do peso. Decidiu fazer dieta e parar de beber por uns tempos. Dono de pousada, casado com uma chef de cozinha, ele teve de se privar dos prazeres da mesa e se afastar da adega montada com esmero para atender aos hóspedes. Essa talvez seja a maior dificuldade para quem se habituou a um estilo de vida que valoriza a enogastronomia. Não só pelas recompensas às quais o cérebro se condiciona rapidamente, mas também pelo aspecto social de comer e beber em boa companhia. Encontros e confrarias em que o vinho é protagonista são como ímãs. Atraem para bate-papos, networking, negócios e quase sempre muitas calorias extras.
Abrir mão de qualquer prazer exige algum tipo de sacrifício. Algo semelhante ao luto. É consenso entre os especialistas que a dor da perda provoca uma sequência de reações, resumidas em cinco etapas: negação, raiva, barganha/negociação, depressão e aceitação. Se isso vale também para uma mudança forçada de hábitos, posso dizer que, no meu caso, a aceitação foi até fácil, mas não sem negociação — etapa que está bem no meio do processo. A negociação, na verdade, está no centro de quase tudo. Na política, no mundo corporativo, nas relações pessoais. E se você chegou até aqui foi por aceitar os termos de uma negociação proposta lá no segundo parágrafo. Movido pela curiosidade, cedeu parte de seu tempo em troca da promessa de uma resposta. E aqui vai ela, em forma de um conselho: entre negar e aceitar, negocie. Só espero que a leitura deste artigo não provoque raiva. Isso equivaleria a recuar uma casa. Então, insisto, negocie.