Economia

Cidades no buraco: quase 90% dos munícipios estão em apuros financeiros

Prefeitos buscam em Brasília uma solução financeira para um problema estrutural: só 11% dos municípios conseguem bancar as próprias contas

Crédito: Istockphoto

Mais de 50% dos municípios fecharam o primeiro semestre no vermelho, um sinal de alerta para prefeitos e candidatos à eleição no ano que vem (Crédito: Istockphoto)

Por Paula Cristina

Um elefante na sala. Assim pode ser definida a situação das milhares de cidades brasileiras com uma estrutura pública custosa, embora ineficiente. Com um tamanho continental, o Brasil soma atualmente 5,5 mil municípios, mas só 49 deles possuem mais de meio milhão de habitantes (e concentram 31% da população total). Segundo o Ipea, apenas 11% dos municípios têm arrecadação suficiente para honrar as contas sem depender de recursos da União ­— um dado alarmante que culmina em uma jornada insustentável. Nem com dinheiro escoando por meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) os prefeitos estão dando conta do próprio reduto.

Prova disso é que 51% deles viram as contas do primeiro semestre fecharem no vermelho. A tensão aumenta a depender do texto final da Reforma Tributária, que pode impactar as arrecadações e resultar em mais problemas de sustentabilidade. A solução, então, seria unificar cidades próximas a fim de diminuir o tamanho do Estado? Não. A saída é ir para Brasília passar o chapéu, e torcer para pingar algum recurso de à economia.

“Essa dinâmica perversa incentiva atitudes fiscalmente irresponsáveis, com projetos de baixa qualidade e eficiência”, diz a especialista em economia do setor público e professora da Faculdade de Ecomonia e Administração da USP Fabiana Fontes Rocha.

Passando o chapéu

A primeira grande peregrinação de gestores municipais pela capital federal ocorreu na semana de 18 de agosto, quando prefeitos de todos os cantos foram levar ao Executivo e ao Legislativo alguns dados atualizados de suas condições financeiras.

Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), 2.362 cidades registraram déficit primário nos primeiros seis meses de 2023. O número é quase sete vezes o registrado em igual período do ano passado (342). Isso levando em conta apenas os 4,6 mil prefeitos que reportaram suas finanças ao Tesouro Nacional (cerca de 83% do total).

No Ministério da Fazenda, interlocutores de Fernando Haddad receberam demandas que envolvem socorro específico para cidades debilitadas por emergências climáticas ou similares, além de pedidos de aumento no fundo de participação, alteração na Reforma Tributária e criação de novos programas de incentivo.

Na jornada eles foram acompanhados do deputado Fernando Monteiro (PP-PE), que carregava o embrião de uma Proposta de Emenda à Constituição com medidas específicas para “salvar” as cidades.

Com a eleição municipal batendo à porta, a corrida por recursos deixa de ser só uma questão de sustentabilidade financeira, mas pela manutenção do poder. Sem verbas para obras e melhorias locais, os redutos eleitorais perdem força e ameaçam também membros do Legislativo.

Por isso nas próximas semanas a Comissão de Assuntos Econômicos deve avaliar um pedido de ampliar os recursos do Fundo de Participação dos Municípios, que hoje recebe 25,5% das receitas do governo federal com IR e IPI.

Vale lembrar que o percentual original era de 22,5%, mas foram aprovadas três parcelas extras de 1% cada uma, em emendas constitucionais de 2007, 2014 e 2021.

Paulo Ziulkosky Presidente da Confederação Nacional dos Prefeitos (Crédito:Alan Marques)

Pelo texto analisado pelos deputados haveria um repasse extra de 1,5%, a ser pago em março de cada ano. A CNM estima que a medida injetaria R$ 11,1 bilhões adicionais nos cofres dos municípios. Ao mesmo tempo, significaria uma perda de receitas para a União, o que não agrada em nada o ministro da Fazenda.

Há ainda a discussão envolvendo uma compensação na ordem de R$ 6,8 bilhões pelas perdas dos municípios com a redução do ICMS sobre combustíveis, aprovada no ano passado, ainda sob o governo Jair Bolsonaro.

“A culpa não é do prefeito. O Congresso e o governo editam medidas sem prever a devida contrapartida financeira.”
Paulo Ziulkosky Presidente da Confederação Nacional dos Prefeitos

Outra demanda dos prefeitos seria a criação de um regime especial de Previdência Social, com um repasse de cerca de 8% para o INSS em municípios com até 142 mil habitantes— um número ingrato, já que 5,2 mil dos 5,5 municípios possuem até 100 mil habitantes (e 69% do total têm menos de 20 mil habitantes).

Hoje as prefeituras de pequeno e médio portes não possuem regimes próprios de Previdência Social. Elas replicam o regime adotado pelo governo federal e precisam recolher 20% sobre a folha, assim como os demais empregadores no Brasil.

Com essa possibilidade na manga, os prefeitos se aproximaram de deputados do centrão, mas Haddad já deu indícios que tal projeto não teria vida fácil.

Em entrevista no mês de julho ele afirmou que um projeto assim seria inconstitucional e que o Executivo era sumariamente contra, já que custaria cerca de R$ 10 bilhões aos cofres da União.

Contrapartidas

Mas há alguns pontos levados pelos prefeitos que estão alinhados com os desejos de Fernando Haddad. Um deles envolve a decisão do Supremo Tribunal Federal pelo voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que daria para a União a vitória em caso de empate em processos com a iniciativa privada.

Mesmo que a Fazenda não tenha dados finais sobre o montante que a medida poderia gerar ao FPM, a Confederação estima que gire em torno de R$ 33 bilhões.

Segundo o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, o enfraquecimento das contas municipais não é uma questão apenas de conjuntura econômica, mas está ligada à ampliação constante das competências municipais que são aprovadas em Brasília e caem como despesa apenas para a gestão municipal. “A culpa não é do prefeito. O Congresso e o governo editam medidas sem prever a devida contrapartida financeira”, disse.

No Congresso Nacional, prefeitos buscaram apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira; o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também entrou na negociação (Crédito:Ueslei Marcelino)

No primeiro semestre de 2022, as prefeituras receberam R$ 13,2 bilhões em emendas indicadas pelos congressistas, valor que caiu a R$ 5,6 bilhões neste ano.

Na saúde, a queda foi ainda mais intensa, de R$ 10,7 bilhões para R$ 2,9 bilhões. “Tudo isso enquanto as despesas saltaram 24% nominalmente, na esteira da concessão de reajustes e da ampliação de investimentos”, afimou Ziulkoski.

Exemplo disso são os aumentos dos salários do sistema judiciário, que tem piso vinculado à União. Os magistrados tiveram reajuste de 33% em 2022 e 14,95% este ano, causando um impacto de R$ 19,4 bilhões. “Hoje 25% da folha está vinculada a esses servidores”, disse o presidente da CNM.

Segundo ele, as receitas dos municípios de fato subiram 10% nos primeiros seis meses do ano, mas transferências da União se mantiveram estáveis (+0,2%). Por isso a conta não fecha.

Uma solução para parte desse impasse pode já estar na gaveta de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. O Projeto de Lei Complementar 195, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), unifica cidades com até 5 mil habitantes, formando estruturas municipais mais enxutas e que, na prática, resultaria em um aumento do FPM per capita dos atuais R$ 9,16 para algo em torno de R$ 36,5. Voilà. O elefante começaria enfim a se dirigir para a porta da sala.