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“Reindustrializar o País precisa ser uma prioridade do governo”, diz José Velloso, da Abimaq

Executivo que pilota a mais importante associação da indústria brasileira enxerga com desconfiança a atuação do Banco Central na condução dos juros, mas avalia como positivas as primeiras iniciativas do governo Lula na área econômica

Crédito: Izilda França

José Velloso, que comanda a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq): "Faz 40 anos que [o Brasil] está andando de lado" (Crédito: Izilda França)

Por Hugo Cilo

No comando da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), o empresário e executivo José Velloso tem observado com atenção os primeiros movimentos econômicos do governo Lula III, as articulações do Ministério de Fazenda sob a gestão de Fernando Haddad e o comportamento do Banco Central na gestão dos juros e da inflação. Sua avaliação é que, na parte do governo, o cenário é melhor do que o mercado pintava no ano passado, e o BC tem praticado política ao resistir à queda dos juros. Em entrevista à DINHEIRO, Velloso explica os desafios e contradições da economia brasileira.

DINHEIRO — O Brasil está perdendo indústria ou a indústria está dividindo espaço com outros setores, como o de serviços?
JOSÉ VELLOSO — Os dois. Há três ou quatro décadas, o Brasil tinha a indústria que era perto de 35 % do PIB. Hoje é 20%. Mas se a gente olhar aquela que mais importa, a indústria manufatureira, a indústria de transformação, tirando construção civil, produção mineral e produção de petróleo, essas coisas, somos 11% do PIB. Já fomos 20%.

Mas a indústria ter uma fatia menor no PIB não é uma notícia ruim, já que outros setores cresceram proporcionalmente…
O problema é que o Brasil tem vivido um processo precoce de desindustrialização. Chamo precoce porque os países desenvolvidos realmente tiveram uma diminuição da indústria no PIB ao longo do tempo, mas alguns estão agora querendo reverter essa situação. Os países desenvolvidos normalmente têm a diminuição da indústria no PIB porque quando um país chega num certo nível de renda per capita, e a população tem mais dinheiro para consumir, os consumidores começam a adquirir mais serviços, principalmente serviços de valor agregado. Menos bens. Mas o Brasil não teve nenhum aumento de renda per capita. Faz 40 anos que está andando de lado. Teve desindustrialização sem ganho de serviços de valor agregado. O Brasil não tem serviço. Ou é o Estado, ou é cabeleireiro, manicure, lava-rápido, essas coisas. O grande consumo de serviços que a população tem, que é educação e saúde, que todo mundo tem, a grande maioria da população tem de graça do Estado, com o SUS e com a escola pública.

Então o Brasil deveria também melhorar o nível dos serviços?
Com certeza. Vou dar um exemplo sobre essa questão da indústria e dos serviços. Imagine um país que só 50% da população possui geladeira. Então, o cara quer ter renda para comprar uma geladeira, é um bem industrial. Agora, num país como os Estados Unidos, em que todo mundo tem geladeira, eu não vou comprar a segunda, terceira, quarta geladeira. Vou fazer turismo, vou comprar streaming, comprar plano de saúde melhor, advogado. É o que acontece, conforme aumenta a renda per capita, inverte na economia daquele país mais serviços de valor agregado do que indústria. O Brasil não teve ganhos de renda, perdeu a indústria. Esse processo vem ocorrendo há muito tempo, há muitas décadas. Por isso, na minha avaliação, reindustrializar o País precisa ser uma prioridade do governo.

“A Constituição de 1988 é muito ruim. Introduziu um monte de obrigações para a indústria e fez com que o Brasil tivesse uma carga tributária muito alta”

Qual é a causa?
Principalmente o Custo-Brasil. São as mazelas da Constituição de 1988, que é muito ruim. Introduziu um monte de obrigações para a indústria e fez com que o Brasil tivesse uma carga tributária muito alta. O custo de capital, a questão tributária, a questão dos encargos trabalhistas… Prejudica o trabalhador da indústria. O empresário gasta R$ 180. O salário é R$ 100. Mas o empregado leva R$ 60 para casa. Então, mesmo com as recentes reformas trabalhista e tributária, ainda precisamos combater esses índices.

Os juros altos também alimentam esses custos?
Sim. Isso é algo conjuntural, não estrutural. A política apertada do Banco Central (BC) nos últimos meses é exagerada. A inflação realmente precisa ser combatida, mas a trajetória de inflação no Brasil é descendente. Está descendo a rampa. Nos últimos meses tivemos deflação. Chegamos perto ao centro da meta. Por isso, é hora de flexibilizar a política monetária. O corte da Selic deveria ter começado meses atrás.

Por que a Selic não caiu mais?
Tem um componente político. Não sou de esquerda ou de direita. Não sou verde, azul ou vermelho. Não é isso. Mas vejo que depois dos ataques do governo ao Banco Central a questão da queda dos juros virou picuinha.

Picuinha de quem?
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, embora seja uma pessoa que o mercado o qualifique bem, acho que ele faz algumas coisas estranhas. Em 2021, por exemplo, quando tivemos uma taxa de juros negativa no Brasil, tínhamos uma taxa de juros abaixo da inflação. Na época, achamos estranho. Agora, é o contrário. Não que ele [Campos Neto] tenha errado em combater a inflação e elevado a taxa de juros. O problema é o tempo que ficou [aplicando] o remédio. Então, a dose do remédio está errada. Já deveria ter diminuído a dose.

A dose e o tempo?
Não tem como não criticar a duração dessa taxa de juros. Pelo menos metade das pessoas que ali estão no Comitê de Política Monetária, o Copom, são funcionários de carreira. Mas tem uma parte que não é. A gente sabe que são pessoas oriundas do mercado financeiro. A gente sabe também que quando saírem do Banco Central, eles vão para o mercado financeiro. Eu não conheço nenhum deles pessoalmente, mas por que eu me atrevo a fazer essa suposição? É uma suposição, uma especulação. No ano passado, todos que saíram do Banco Central e também do Ministério da Economia ou da Fazenda, foram para o mercado financeiro. Os que eram do último governo estão todos no mercado financeiro. A equipe do Henrique Meirelles está toda no mercado financeiro. A equipe do governo Temer está toda no mercado financeiro. O Paulo Guedes está no mercado. O mercado é livre. As empresas contratam quem quiser. Mas faço essa provocação porque nunca vi alguém sair do Banco Central e trabalhar na indústria. Vai trabalhar em banco, em financeira, em fintech, em boutique de investimentos. E ganham muito bem com a ajuda dos juros altos.

Como resolver isso?
Deveria existir uma quarentena. Quem trabalhar em uma área econômica, no Ministério da Fazenda, do Planejamento, no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, no BNDES, ou seja, quem passa pela área econômica deveria ter uma quarentena de uns cinco anos. Aí eu queria ver se todos iam votar pela manutenção da Selic no patamar que está. Sabemos que há um interesse em ganhar com renda.

Isso é ruim?
Para quem investe, não. Minha mãe tem 93 anos e tudo que ela tem está aplicado. Ela teve um ganho nos últimos 12 meses, o triplo da inflação. Os juros altos são bons para o mercado financeiro. Então, a Selic do jeito que está promove transferência de renda. Tira do setor produtivo e transfere para quem vive de renda. O Banco Central é autônomo, é verdade, mas os diretores do BC são todos da mesma cepa. Todos pensam igual, todos vêm da mesma origem e vão para o mesmo destino.

Mas não é positivo o cenário de trajetória de queda da Selic?
É positivo, mas precisa cair mais. O Brasil é um país que é tão disfuncional que hoje os juros para a pessoa física estão em torno de 300%. Os juros para a pessoa jurídica estão em torno de 30% a 40%. Isso mexe com toda a economia. Mexe com o câmbio. Mexe com as expectativas. O próprio mercado financeiro estava prevendo dólar a R$ 5,20 algumas semanas atrás. A cotação chegou a R$ 4,70. Agora falam em R$ 5. Ninguém sabe mais.

Essa oscilação tem fatores políticos?
Sem dúvida. A articulação do presidente Lula estava uma tragédia no começo do governo. Depois ele conseguiu se arrumar com o Centrão. Ou seja, na questão política houve uma conjuntura favorável, que se somou aos recordes do agronegócio. O mercado não previa isso no final do ano passado.

O dólar, na sua visão, está barato ou caro?
É difícil saber. Acho que está caro porque a cotação está abaixo do que o mercado previa. Mas a volatilidade é o que mais atrapalha. Sou um defensor do câmbio livre. O problema é que o câmbio do Brasil não é livre. O Banco Central deveria agir em um ambiente livre de política, com uma atuação bem calibrada com a realidade da economia.

Isso não vai condenar o Brasil a ser um mero fornecedor de matérias-primas?
Vai não, já é. Vinte anos atrás, produtos manufaturados eram mais de 70% das nossas exportações. Hoje, são cerca de 40%. Um navio que sai do Brasil carrega dentro dele muito menos mão de obra, muito menos impostos, muito menos riqueza e muito menos salários. Sai cheio de minério de ferro, e importa placas de aço. Embarca celulose, importa papel. Na hora de agregar valor, não tem como competir. A indústria sem tecnologia era 25% da produção brasileira. Hoje é 35%. A primarização da indústria leva a uma perda de densidade tecnológica.

“A taxa de juros do jeito que está promove transferência de renda. Tira do setor produtivo e transfere para quem vive de renda’’

Por que o mesmo mercado, que gosta de Campos Neto, hoje aplaude Fernando Haddad e os dois têm ideias opostas sobre o papel da política monetária?
Por motivos diferentes. O Campos Neto é um cara que veio do mercado financeiro. Ele trabalhava num banco importante. Era uma pessoa conhecida no mercado financeiro, respeitada, e assumiu o Banco Central, e lá no Banco Central ele tem uma política bastante conservadora. Os bancos gostam disso. Esse é o motivo dessa aproximação do Roberto Campos com os bancos. A questão do Haddad é um pouco diferente. Acontece que o Haddad tem mostrado responsabilidade nas suas ações. O Arcabouço Fiscal apresentado, apesar de algumas críticas, foi muito bom. É aquela velha frase: a carga se ajeita na carroça conforme ela vai andando.

A carga está ajeitada?
O mercado percebeu que, com o apoio do Congresso Nacional, as coisas foram se assentando para o governo. Prova disso é que depois da aprovação da reforma e do Arcabouço, a bolsa subiu e o dólar caiu. O mercado tem gostado do ministro da Fazenda. O Haddad demonstra que está buscando o superávit primário, com responsabilidade fiscal. Haddad demostra bastante responsabilidade e um respeito pelo orçamento da União. O medo de antes, passou. Para atrair investimentos, é preciso ter instituições sólidas e regras do jogo bem conhecidas. Se houver isso, com taxa de juros ajustada e, consequentemente, um câmbio ajustado, a economia volta a crescer.