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“O arcabouço fiscal é um avanço, mas insuficiente”, diz Paulo Hartung

O economista que governou o Espírito Santo por três mandatos entende que a gestão Lula erra ao não fazer esforços para controlar os gastos públicos. Hoje ocupando uma cadeira no Conselho de Administração da Vale, afirmou que a companhia vive um novo momento de governança, sem esconder os erros do passado

Crédito: Gladstone Campos / Realphotos

O ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, atual membro do Conselho de Administração da Vale (Crédito: Gladstone Campos / Realphotos)

Por Sérgio Vieira

O balanço dos primeiros nove meses do governo de Luiz Inácio Lula da Silva é marcado por erros e acertos. Na política internacional, o petista começou patinando, mas acertou o tom na viagem aos Estados Unidos. Na economia, o arcabouço fiscal é visto como um passo à frente, mas insuficiente. Essa avaliação é do economista Paulo Hartung, que governou o Espírito Santo por três mandatos. Para ele, falta estabelecer, por parte da atual gestão, o compromisso de reduzir os gastos públicos. “É insuficiente porque tem metas ousadas, já que a confiança está em novas receitas, o que representa uma espécie de pássaro voando. O que está na mão é a despesa do governo. E há um mar de desperdício no setor público brasileiro”, afirmou.

Hartung entende que o Brasil precisa mudar essa direção para conseguir aproveitar as oportunidades que podem surgir, como na área de energia limpa e na garantia do suprimento de alimentos. Recentemente, o ex-governador assumiu uma cadeira no Conselho de Administração da Vale. Ele garante que a realidade da companhia é bem diferente da dos últimos anos, com uma governança mais sólida. “Tenho tentado dar boas contribuições a uma empresa histórica do País, para que possa superar seus tropeços, sem escondê-los.”

DINHEIRO — Que avaliação o senhor faz dos primeiros nove meses do terceiro mandato do presidente Lula?
Paulo Hartung — Há fatores positivos no período. Um deles é a presença internacional. Essa última, em Nova York, foi um bom sinal. Os desacertos das primeiras viagens levaram à reflexão e reorganização de postura. O Brasil agora se colocou compatível com suas tradições em termos de diplomacia e mostrou conexão com as oportunidades que estão em cima da mesa neste mundo complexo que estamos vivendo. Há questões climáticas que estão postas, um desarranjo das cadeias globais de suprimentos, fruto também da pandemia, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Se colocar no mundo não é fácil. O nosso governo patinou no início, nas viagens internacionais, mas agora me deu a impressão, nessa última presença nos Estados Unidos, que os movimentos começaram a ganhar algum nível de coordenação compatível com nossa tradição de diplomacia, que é muito boa. E começamos com os desafios e oportunidades que o mundo nos oferece.

E com os desafios internos, qual sua visão?
Entendo que governo bom é aquele que estrutura sua base de sustentação na sociedade e nas instituições, antes mesmo de tomar posse. O governo passado só se deu conta de que precisava ter uma base no Parlamento na metade do mandato. Hoje há um esforço para manter uma base institucional, principalmente parlamentar. Mas isso não está concluso. O sinal é mais positivo do que negativo, mas perdeu-se um tempo muito grande. É ruim essa história de criar ministério, tirar ministra, em um momento em que precisamos de diversidade. E o desgaste disso tudo é muito grande.

“O mundo vai nos olhar e querer saber se teremos capacidade de administrar a dívida pública do País. E fazer isso com arrecadação nova é mais difícil’’

E no âmbito econômico?
O arcabouço fiscal é um passo à frente, mas ainda insuficiente. É um passo à frente porque é bom ver o PT fazendo um arcabouço, ainda mais para os que disseram em algum momento que gasto é vida. Ver um governo petista colocar na praça algo do tipo por si só é um avanço. Mas é insuficiente porque tem metas ousadas, já que a confiança está em novas receitas, o que representa uma espécie de pássaro voando. O que está na mão é a despesa do governo. E há um mar de desperdício no setor público brasileiro, em todas as áreas. Há desperdício na saúde, na educação. Há um problema de gestão. Há outras questões importantes, como a independência do Banco Central. Nosso país avançou a ponto de ter o líder que fala mal da autonomia do Banco Central, mas que é beneficiado por ela, que está lá segurando o processo inflacionário. Há hoje uma inflação em queda, e isso é importante. Em muitos países, ela voltou. O Brasil está indo bem nisso. Fomos bem nos dois trimestres, em termos do Produto Interno Bruto (PIB). O primeiro foi muito carregado pelo agronegócio, um segmento, aliás, de que o governo fala muito mal. O segundo não foi extraordinário, mas razoável. Há inflação em decréscimo, um PIB de bom tamanho e 1 milhão de empregos gerados, além do início de queda da taxa de juros. Estamos vivendo um momento razoável, mas não temos garantia de futuro.

E o que é possível fazer para reverter essa falta de garantia?
Temos de fazer nossa lição de casa. Uma dessas lições é convencer o mundo de que temos uma política ambiental correta, e a questão é o combate ao desmatamento. Há sinais de que isso está começando a ganhar força, principalmente na Amazônia, mas é necessário ter atenção com o Cerrado. Outro dever é se vamos ter capacidade de controlar o crescimento da dívida. Essa é a questão central. O mundo vai nos olhar e querer saber se vamos ter capacidade de administrar a dívida pública do País. E pensar em fazer isso com arrecadação nova é mais difícil. É necessário olhar a reorganização de despesas. Há um número grande de programas que não têm foco. Não há esforço em cortar despesas e reduzir desperdício.

O governo está falhando no compromisso de reduzir gastos?
Buscar o dinheiro para formar sua arrecadação é uma obrigação. Isso faz todo o sentido. Mas a gente vem de um ciclo de ações erradas, inclusive do governo passado, como a PEC Kamikaze (que liberou gastos para criação de novos benefícios sociais). Há fatos positivos do governo passado, como a Reforma da Previdência, independência do Banco Central, marco regulatório do saneamento básico. Mas quando adiou o pagamento de precatórios e fez essa PEC, adotou medidas desorganizadoras. Então, esse governo já chegou com o barco meio virado para o lado. Quando ele começa, faz a PEC da Transição. Ali precisava de dinheiro para suportar o programa de transferência de renda. A conta que tinha na época é que seriam necessários R$ 50 bilhões para dar conta do Bolsa Família. Mas foi feita uma PEC para buscar R$ 207 bilhões. Estão abrindo a conta do gasto, confinando que vai ter receita. Minha experiência como gestor é que primeiro é preciso colocar a mão na receita e depois organizar o gasto, e não o contrário. Já que autorizou a continuidade de gastos, que veio do governo passado, era muito importante que tivesse um rígido controle de gastos públicos. Esse é o esforço que eu falo, de combate a despesas inúteis na execução orçamentária do País. Esse esforço ainda não começou. E precisa começar. Espero que o governo vá para outra direção.

Qual o risco para o Brasil se isso demorar?
Quanto mais rápido chegar aos desafios, maior a chance de diminuir o risco do insucesso. Há coisas que precisam ser feitas. Se as decisões adequadas não forem tomadas, em algum momento a economia cobra o seu preço. Como dizia o velho Roberto Campos (avô do atual presidente do Banco Central), o Brasil não perde a oportunidade de perder oportunidade. A gente deveria aprender com isso. Esse é o melhor momento de oportunidades para o País.

Quais são as principais oportunidades?
Quando falamos em descarbonizar a economia, significa que terá de mudar a matriz energética. E o Brasil tem aqui. Temos energia eólica, solar e uma experiência notável de biomassa. O País pode ser um provedor de energia limpa. O mundo precisa de alimentos. E temos terras que podem ser convertidas para produção de grãos. O Brasil está com a bola na cara do gol, e sem goleiro. Não dá para chutar para fora. Estamos com muitas oportunidades. É preciso que haja um olhar macro sobre isso.

Pela sua experiência, qual seria um bom índice de redução nos gastos públicos?
É possível economizar de 15% a 20% com um programa razoavelmente montado, e de forma rápida. É muita coisa sendo continuada no orçamento sem produzir nenhum resultado para a sociedade. Só faz sentido ter algo no orçamento que tenha retorno concreto de melhoria de vida, de abertura de oportunidades. Há muito dinheiro na execução orçamentária que poderia ser muito melhor alocado.

E por qual razão o atual governo não adota esse tipo de medida?
Essa é uma concepção do PT que vem lá de trás, quando tinham que fazer um contraponto aos tucanos. O mundo já mudou. A realidade política do Brasil mudou. Não há outro remédio do que a máquina pública funcionar. Os bons governos fortalecem as instituições democráticas. O governo precisa funcionar e entregar. O bom governo é o que facilita o capital privado a se movimentar, é o que cria boas regras e permite que o progresso se estabeleça.

O senhor acredita, então, que só é possível ter responsabilidade social com responsabilidade fiscal?
A experiência mostra isso. Não é narrativa, é algo estudado. É preciso ter responsabilidade fiscal para conseguir melhorar a aprendizagem de nossas crianças, avançar no programa de vacinação, aprimorar a segurança pública. Quem não cuida das contas, não cuida dos pobres. Me lembro quando o Espírito Santo ficou de pé e o Rio de Janeiro quebrou. E depois quebrou Minas Gerais. E o capixaba passou a ver no seu entorno a diferença, com dois estados em que a máquina pública ruiu. Quem paga a conta dessa desorganização é o pobre do Brasil.

“É preciso ter responsabilidade fiscal para conseguir melhorar a aprendizagem de nossas crianças, avançar no programa de vacinação, aprimorar a segurança pública’’

O senhor assumiu recentemente uma cadeira no Conselho de Administração da Vale. Qual tem sido seu papel?
Minha contribuição é de conhecimento sobre o Brasil, de experiência com os brasileiros. A empresa está no processo de recolocação no Brasil e no mundo, e posso ajudar nesse processo de ter mais diálogo com os stakeholders. Eu posso ajudar em todo esse debate de descarbonização, que é fundamental nesse setor mineral. Também posso ajudar a Vale a ser uma empresa mais diversa, e que reflita a diversidade extraordinária do povo brasileiro. Estou nos comitês de sustentabilidade e de inovação, participando de bons debates e tentando dar boas contribuições a uma empresa histórica do País, e que possa superar seus tropeços, sem escondê-los. Foram tropeços graves e recentes.

E o que precisa ser feito?
Precisa mostrar para o Brasil que o caminho é outro. O sentimento que tenho é de surpresa positiva do que eu tenho visto dentro da companhia. Convivi com a Vale de Eliezer Batista, de Roger Agnelli, de Murilo Ferreira (ex-presidentes), já que o Espírito Santo é importante na operação da empresa. E o que estou vendo hoje é um time de excelente qualidade, com um plano de voo sólido, principalmente na segurança.

E como o senhor enxerga a governança da empresa atualmente?
A Vale hoje é uma empresa em que não há um bloco de controle como tinha até recentemente. Há acionistas de referência, como Previ, Bradesco, Mitsui. Mas a distribuição dos acionistas é ampla. A empresa mudou muito. Hoje há governança, com regras de padrão mundial. Não é a mesma Vale de 20 anos atrás. É outra companhia.