A nova fórmula Bosch
Gigante alemã com receita de 88 bilhões de euros traça plano de crescimento global com foco em software e no etanol para o Brasil, que representa 74% do faturamento total na América Latina
Por Victor Marques
Na filosofia alemã, coincidências e acaso não existem. Por isso, pode ser considerado apenas simbólico que a gigante Bosch tenha surgido em 1886, mesmo ano em que o primeiro carro movido por motor a gasolina foi patenteado pelo também alemão Carl Benz. Ao nascer, em Stuttgart, a empresa fundada por August Robert Bosch era focada em produtos e serviços de precisão mecânica e engenharia elétrica, como instalações telefônicas. Em pouco tempo, a companhia percebeu que a invenção do automóvel estaria colada a seu destino. Em 1890, Robert Bosch inventou a vela de ignição — e os negócios decolaram. O faturamento global em 2022 foi de 88,2 bilhões de euros (12% acima de 2021) e o lucro líquido somou 1,8 bilhão de euros.
Essa potência global é movida por um exército de 421 mil funcionários que perseguem o mesmo objetivo: “Criar oportunidades”, como afirmou o chairman global da companhia, Stefan Hartung, ao apresentar em março os resultados de 2022. “Aqui na Bosch trabalhamos com as mentes mais brilhantes do mundo desenvolvendo tecnologia ‘inventada para a vida’, para que todos possamos seguir em frente e juntos”, escreveu Hartung no relatório da empresa.
Hoje, a Bosch se estrutura a partir de quatro grandes verticais: soluções para casa; indústria & comércio; soluções customizadas de mercado; e mobilidade, que sempre esteve vinculada a seu DNA. A empresa, consolidada no mercado automotivo mundial, tem em softwares o plano para continuar a crescer. CEO e presidente da Robert Bosch América Latina, Gastón Diaz Perez disse à DINHEIRO que “a expectativa a longo prazo é que os softwares representem 10% das nossas fontes de receita”.
Para Cassio Pagliarini, sócio da Bright Consulting, o foco em software está correto e a resposta é clara:
“Os carros hoje são praticamente computadores em cima de rodas”.
Em veículos de ponta, é possível encontrar de 300 a 1,5 mil chips, além de mais de 100 milhões de linhas de código que comandam diversas funções — para efeito de comparação, um avião Boeing 787 Dreamliner tem aproximadamente 14 milhões. “Focar em software não é um plano bom só para contornar a crise automotiva no Brasil, mas atende a uma demanda gigantesca que só tende a crescer no mercado mundial”, afirmou Pagliarini.
Mesmo agora, quando as demandas de software não chegam a 1% das receitas da companhia, a Bosch já tem contratados 44 mil engenheiros de software no mundo, mais que a metade dos 85 mil funcionários de P&D (Pesquisa & Desenvolvimento). Diaz Perez afirma que há cinco anos esse número ficava entre 5% e 10%. “Já há algum tempo, a Bosch também se vê como uma empresa de software de mobilidade.” No ano passado, os investimentos em inovação do grupo alemão somaram 7,2 bilhões de euros, o equivalente a 8% das receitas globais e 1,1 bilhão de euros acima de 2021.
Meta é treinar os próprios talentos
A busca por inovação e formação é uma obsessão na empresa, que cada vez mais aposta na geração de seus próprios talentos. Nessa estratégia, a companhia criou a Digital Talent Academy (DTA, Academia de Talentos Digitais, em português), que em 2021, costurou no Brasil com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), um programa que tem como principal objetivo treinar jovens em uma variedade de habilidades digitais como programação, robótica, automação inteligente, inteligência artificial (IA) e realidade virtual, entre outros.
O acordo desenvolvido no Brasil ajuda a contornar diretamente um dos maiores problemas do setor da tecnologia, a falta de talentos qualificados. É esperado que até 800 mil novas oportunidades sejam criadas em cinco anos na área de TI, contudo, apenas 268 mil dessas vagas serão ocupadas, segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom).
O DTA tem foco em jovens de 16 a 19 anos da região de Campinas (SP), onde fica uma das operações no País. Os participantes recebem salário e atuam dentro da unidade em projetos reais. Depois do período estabelecido de aprendizado, todos são contratados, podendo ser expatriados como talentos para outras sedes da companhia no mundo. O programa selecionou neste ano apenas 36 jovens de um total de 2,4 mil aplicações. Segundo a empresa, a iniciativa — que deve ser estendida a outros pontos da empresa no Brasil — chegará ao final de 2023 com 200 alunos e, no próximo ano, a 300. A projeção é formar cerca de 1 mil em cinco anos. Uma espécie de ‘crias da base’ (termo usado na formação de jogadores de futebol) da Bosch.
Um centro de inovação baseado em Campinas
Como parte dos investimentos em tecnologia digital, a empresa inaugurou no início deste ano o DigiHub América Latina, em Campinas, focado em conectar projetos, negócios, pessoas para inovação. No local também está a plataforma The Connectory Brasil, criada para impulsionar o desenvolvimento de soluções inovadoras e novos modelos de negócio por meio de parcerias com startups, universidades, institutos de pesquisa com foco em AIoT (união entre IA e internet das coisas). É uma rede global presente no Brasil, Chicago (EUA), Guadalajara (MEX), Stuttgart (ALE) e Xangai (CHI).
“Com iniciativas como a DTA, buscamos posicionar a Bosch América Latina como provedora de soluções digitais para o Grupo Bosch mundial”, afirmou Diaz Perez.
Na América Latina, a empresa passou dos R$ 10 bilhões em vendas em 2022, aumento de 11,5% na comparação com 2021 e em linha com a performance global. O Brasil contribuiu com 74% (R$ 7,8 bilhões, sendo 23% gerados a partir das exportações). A expectativa para 2023 é investir R$ 940 milhões na América Latina, com R$ 290 milhões para ampliar eficiência e competitividade de suas unidades fabris. Mesmo que o País seja decisivo na operação latino-americana do grupo, a dependência do mercado nacional precisa diminuir.
A empresa está presente na região desde 1924 (chegou ao Brasil em 1954) e atualmente tem cerca de 11,5 mil funcionários, 86% deles nas unidades brasileiras, com mais de 10 mil colaboradores. “Em 2010, sem considerar o Brasil, os demais países da América Latina eram responsáveis por cerca de 6% do faturamento da Bosch na região”, disse Diaz Perez. “Hoje esse número passou para 26% e o desafio é elevar a participação para 30% nos próximos anos.”
Afastando a Crise
Os esforços em equilibrar a presença regional somados à capacitação de talentos miram um mercado que parece atravessar o susto vivido desde a pandemia. De acordo com Diaz Perez, o ponto que mais afetou a companhia alemã durante a crise foi a falta de alguns insumos críticos. “Apesar da redução nos volumes de produção, a Bosch manteve crescimento no setor da mobilidade, além de ampliar sua participação de mercado.”
O cenário de desabastecimento vai se tornando página virada. Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), depois de um primeiro quadrimestre ainda muito difícil em razão da falta de semicondutores, o setor acelerou o ritmo e conseguiu atender parte da demanda reprimida nos mercados interno e externo. A entidade projeta alta de 3% nos licenciamentos e de 2,2% na produção em 2023.
Com essa possibilidade de retomada, mesmo que não acelerada, a Bosch está entre os que mais ganham, já que está na ponta das maiores fabricantes dos principais componentes a qualquer automóvel, como baterias, filtros, motores diversos, freios, válvulas de injeção… A divisão de mobilidade da companhia desenvolve tecnologias para eletrificação, híbrido-flex (com etanol), conectividade, automação e redução de emissões.
Outro grande foco é o incentivo da utilização do etanol no Brasil. Fábio Ferreira, diretor de Produtos da divisão de Powertrain Solutions da Bosch, disse que o caminho de sustentabilidade para mobilidade na empresa segue as duas vertentes: a do veículo elétrico e a do motor a combustível.
“O etanol é um elemento fundamental na história da sustentabilidade do Brasil, por isso adaptamos as tecnologias especificamente para cada mercado”, afirmou. Mesmo que a malha energética do País, que é composta majoritariamente de energia limpa, beneficie o modal elétrico, o etanol é ainda economicamente uma opção mais viável para o ecossistema brasileiro.
“Com o DTA, buscamos posicionar a Bosch como provedora de soluções digitais para o grupo bosch mundial”
CEO e presidente da Robert Bosch América Latina, Gastón Diaz Perez
Para o especialista Cassio Pagliarini, é a melhor saída de baixo custo para a mobilidade sustentável no País. “No Brasil, um veículo a combustão comum rodando com etanol emite menos gás carbônico do que um carro elétrico rodando, por exemplo, em um país como a Polônia.” Isso porque a geração de energia do país é feita em sua maioria a partir de combustíveis fósseis. “É a melhor solução para os mercados que ainda não conseguem massificar a compra de veículos a bateria, porque eles ainda são muito caros.”
Mesmo numa companhia centenária, dona de 486 empresas regionais e subsidiárias espalhadas por seis dezenas de países, são peculiaridades como essas que fazem o Brasil continuar peça fundamental na estratégia da Bosch. E espera fazer parte relevante do crescimento em vendas entre 6% e 9% previstos para a operação total em 2023. Seguindo em frente e juntos, como prega o chairman Stefan Hartung. Sem acaso ou coincidências.