Infraestrutura: entenda o momento histórico e os desafios do Brasil
Entrada em vigor da nova Lei das Licitações, em janeiro de 2024, abre caminho para a atração de um volume maior de investimentos em obras que permitam ao Brasil ser mais competitivo globalmente — além de assegurar as condições para que o PAC não fique apenas na promessa
Por Beto Silva e Edson Rossi
RESUMO
• O principal gargalo do crescimento e do bem-estar é a infraestrutura de um país
• Para dar modernidade a esse pilar é preciso legislação moderna e fluxo de capitais
• Analistas alertam que, sem investimento, Brasil perde competitividade em relação aos países em desenvolvimento
• Nova Lei de Licitações pode combater corrupção e garantir a finalização de projetos
• Congresso precisa acelerar pautas e governo deve aprimorar estrutura de garantias
Existem dois motivos pelos quais destravar investimentos em infraestrutura significa dar um salto na história de qualquer país. O primeiro é o mais evidente. O apelo econômico. Um aparato robusto de energia, saneamento, telecomunicação e transporte (ferrovias, hidrovias, malha aérea e rodovias) é seminal para garantir fluidez e escalabilidade de produtos e serviços. Em resumo, é a base para o aumento de emprego e renda de forma consistente e duradoura. O tema é tão decisivo que conseguiu algo improvável: ser consenso entre economistas. Tanto que há dois anos ficou famosa a carta aberta que 17 deles, todos vencedores do Prêmio Nobel, assinam em conjunto. “O sucesso do século 21 exigirá o desenvolvimento da infraestrutura”, afirmaram no documento que incluía nomes como Stephen Stiglitz e Daniel Kahneman.
Eles defendiam o pacote conhecido por Build Back Better, de US$ 2,2 trilhões, proposto pelo governo Joe Biden. Se o primeiro motivo é econômico, o segundo é social. Investir em infraestrutura é o primeiro caminho de redução das desigualdades. Em especial num país no qual 100 milhões de pessoas não têm em suas casas acesso a redes de esgoto. Durante audiência junto à Comissão de Infraestrutura do Senado, em maio, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, foi direto ao ponto. “O Brasil é muito rico para ter um povo tão pobre.”
Destravar esse nó exigirá duas coisas. Uma legislação modernizada e fluxo de capitais. No caso brasileiro, os investimentos em infraestrutura de base caíram de 5% do PIB nos anos 1980 para a casa dos 1,7%. Este ano, devem chegar a 1,9%. É pouco.
Para Jorge Sant’Anna, CEO e cofundador da BMG Seguros, profundo conhecedor do tema, serão necessários pelo menos 4,3% do PIB por ano pelos próximos dez anos. “O subinvestimento acarreta baixa competitividade em relação aos demais países em desenvolvimento”, disse. O Brasil ocupa a 78ª posição no Ranking de Competitividade Global de 2021, que classificou 141 países.
Sant’Anna vê uma chance histórica para o Brasil a partir de janeiro, quando entra em vigor a Nova Lei de Licitações (14.133/21). Mais do que segurança jurídica, ela pode mudar de patamar o universo de contratação de projetos de infraestrutura. Irá corrigir, em sua visão, um gap legal de 130 anos em relação a países como os Estados Unidos.
No fim do século 19, os americanos sofriam de males que os brasileiros conhecem bem: a corrupção a partir de obras públicas. Em 1894, criaram uma legislação (aprimorada no século passado) baseada em Performance Bonds.
Basicamente, ela prevê a obrigatoriedade de que todo contrato de construção firmado entre o poder público e uma pessoa jurídica privada a partir de determinado valor seja, sem exceção, segurado em 100% do valor do contrato. Mais que isso. Que seria preciso inserir entre contratante (público) e contratado (privado) um agente que de alguma forma fiscalize a execução financeira e a execução física dos projetos. “Se não houver a entrega do jeito que está acordado, a seguradora assume a obra ou indeniza o governo”, disse Sant’Anna.
“Só há um caminho: ampliar investimentos privados e investimentos públicos. O mundo quer investir no Brasil.”
Renan Filho ministro dos Transportes
Essa simples modelagem centenária permite o óbvio: que os projetos sejam entregues. Se o contratado não acabar a obra, a seguradora assume e conclui. Outro ponto igualmente decisivo: a corrupção desapareceu. “Você interpõe entre o contratado e o contratante um agente que fiscaliza tudo”, disse Sant’Anna. Para ele, a corrupção não acontece no ato da compra ou da contratação e sim durante a obra.
O avanço legal deve destravar a capacidade de o Brasil atrair investimentos que hoje não cabem no bolso do governo. Tanto que o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), focado em Desenvolvimento e Sustentabilidade e lançado dia 11 de agosto, não fica de pé sem o dinheiro privado. Do total de R$ 1,7 trilhão previstos (83% investidos até 2026), a maior parte do bolo sairia da iniciativa privada (cerca de 40%).
Saneamento e logística
Um dos principais aportes, de R$ 610 bilhões, será em:
• modernização da mobilidade urbana,
• saneamento,
• gestão de resíduos sólidos,
• urbanização de favelas,
• e contenção de encostas e combate a enchentes.
Outro eixo fundamental do programa é o de Transporte Eficiente e Sustentável, que toca justamente na infraestrutura logística, com aportes em rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias, com aporte previsto de R$ 349 bilhões.
“No Brasil, a eficiência do investimento em infraestrutura é muito baixa. há muitos projetos mal desenhados.”
Silvia Matos FGV/Ibre
O Ministério dos Transportes, comandado por Renan Filho, já se mexe para incentivar e garantir a atuação de players da iniciativa privada no jogo. A pasta reuniu no dia 19 de outubro, na sede da B3, em São Paulo, mais de 130 investidores, representantes de construtoras e associações do setor rodoviário para apresentar os caminhos de redução dos gargalos logísticos a partir da ampliação de investimentos no Brasil.
“O País percebeu, o presidente Lula percebeu, que só há um caminho: ampliar investimentos privados e investimentos públicos. O mundo quer investir no Brasil”, afirmou Renan Filho na abertura do evento Brasil Transport Invest. A intenção do ministro é expandir a integração entre os setores público e privado e garantir a previsibilidade dos projetos para os próximos anos.
Uma das ações para isso é a Política Nacional de Outorgas Rodoviárias, publicada sob forma da Portaria 995/2023 no dia 18 de outubro. A norma define diretrizes para promover sustentabilidade contratual, social e ambiental.
Outra medida é a retomada de cerca de 500 contratos que estavam parados ou em ritmo lento, de obras e manutenção de estradas. Isso foi possível pela margem aberta com a promulgação da Emenda Constitucional 126/2022, que permite ao governo deixar de fora do teto de gastos R$ 145 bilhões no orçamento de 2023.
Para abrir ainda mais flancos de investimentos em infraestrutura, há uma agenda importante em debate no Congresso, e que precisa avançar. Entre as proposituras a serem analisadas está o Projeto de Lei 2.646, de 2020, a chamada Lei das Debêntures de Infraestrutura, que voltou do Senado para a Câmara em setembro e aguarda tramitação. Na proposta, a captação da venda de títulos de crédito deve ser aplicada em projetos de infraestrutura ou em produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Para Gesner Oliveira, economista, professor e coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da Fundação Getulio Vargas (FGV), a Lei das Debêntures é apenas uma iniciativa de uma série de matérias que estão sendo discutidas pelos congressistas. “É preciso acelerar essas pautas”, disse o especialista, ao citar ainda outros textos que contribuem para atrair aportes à infraestrutura brasileira, como o PL 7.063/2017, que consolida as regras para concessões, o PL 459/2017, que permite a securitização de recebíveis tributários, o PL 4.881/2012, legislação referente à mobilidade urbana, além da revisão da regulação do setor elétrico, economia circular e inserção do hidrogênio como fonte de energia no Brasil.
“Investimento em infraestrutura é uma verdadeira fronteira de expansão para a economia, uma pré-condição para o País crescer de forma sustentada. Inclusive aumentando a competitividade, a produtividade.”
Gesner Oliveira, da FGV
Segundo ele, apesar dos desafios e das dificuldades, o Brasil tem gerado interesse por parte de investidores internacionais. Entre os fatores estão a melhora na classificação das notas de risco. A S&P Global Ratings elevou a perspectiva de crédito soberano do Brasil para “positiva” e a Fitch aumentou a avaliação de crédito soberano do Brasil de BB- para BB. Outra razão é conflito no Leste Europeu, entre Rússia e Ucrânia. “Uma parte dos investimentos que poderiam ir para lá foram redirecionados para a América Latina, Brasil em particular”, disse. “Há uma percepção de oportunidades interessantes na infraestrutura, porque tem muita coisa a se fazer.”
Baixa eficiência
O futuro pode até parecer promissor, mas o Brasil insiste em repetir traumas. Por isso Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro e pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV/Ibre, ressalta que é importante avaliar o que ocorreu no passado.
Segundo ela, em análise do pesquisador Claudio Frischtak, da consultoria internacional de negócios Inter.B, a primeira versão do PAC, lançada em 2007, previa investimentos de R$ 504 bilhões, mas concluiu apenas 9% dos projetos. A segunda versão, de 2011, avaliada em R$ 708 bilhões, entregou 26% das obras. “Os estudos mostram que a eficiência do investimento em infraestrutura no Brasil é muito baixa, pois há muitos atrasos, sobrecustos e projetos mal desenhados”, disse Matos. “A governança adotada na realização dos projetos de infraestrutura tem grande influência sobre o resultado desse investimento.”
Silvia Matos diz que haverá dificuldade para o governo conseguir recursos em um contexto de déficit fiscal elevado e o setor privado sofre com juros reais altos. A restrição para o financiamento é muito maior hoje do que foi no passado.
“No geral, precisamos melhorar o planejamento, com critérios rigorosos de seleção de projetos, estabilidade e previsibilidade na legislação, incentivando a concorrência e, por fim, monitoramento, controle e gestão dos projetos.”
Silvia Matos, do FGV/Ibre
O que faz o tema voltar ao ponto levantado por Sant’Anna, da BMG Seguros. “Todo projeto de infraestrutura exige uma complexa rede de proteção aos investidores e contratantes”, afirmou. Isso inclui ramificações como garantia de preço, qualidade e prazos contratados; retorno do investimento público; fomento à exigência de um projeto consistente; comprovação de licenças ambientais… “Você investiria numa obra que não consiga garantir sua execução?”. E ele mesmo responde. “Sem uma estrutura de garantia adequada jamais teremos investimento privado no Brasil.”
Entrevista com Jorge Sant’Anna, CEO e cofundador BMG SEGUROS
“O nível de investimento do Novo PAC só será alcançado se houver uma revolução no segmento de seguros e resseguros.”
Qual ambiente de segurança jurídica temos hoje no setor de infraestrutura?
De entraves regulatórios. Eles provocam uma enorme incerteza no investidor. Basta olharmos o período depois da Lava Jato, em que tivemos um cemitério de obras inacabadas, sem nenhuma indenização de seguradoras tanto a financiadores quanto contratantes. Esse quadro aterroriza investidores privados e sobretudo o estrangeiro. Sem uma estrutura de garantia adequada jamais teremos investimento privado no Brasil.
Qual a mudança decisiva teremos a partir de janeiro, quando efetivamente entra em vigor a Nova Lei de Licitações?
Todo projeto de infraestrutura exige uma complexa rede de proteção aos investidores e contratantes, que nos países desenvolvidos são essencialmente desempenhados pela indústria de seguros e resseguro, através de instrumentos como o Performance Bond.
De que se trata o Performance Bond?
Um instrumento que garante preço, qualidade e prazos contratados, além de um projeto consistente e a comprovação de licenças ambientais. Enfim, ele desempenha papel fundamental na execução correta de obras em que o contratante é o governo. Nos EUA, os Performance Bonds remontam a 1894.
Nossa legislação corrigirá isso?
A nova lei [14.133/21] traz uma série de inovações e melhorias. Mesmo tendo limite de cobrir só até 30% nas obras de grande vulto [no caso americano é de 100%], houve aumento da cobertura segurada, já que por aqui antes era de 10%. Há também inclusão da cláusula que permite às seguradoras finalizarem obras nos casos de insuficiência financeira do prestador. A seguradora ganhou a posição de interveniente do contrato, conferindo a ela maior número de obrigações e responsabilidades na execução.
Quanto a questão de seguros & garantias pode baratear o crédito?
É difícil prever a redução do custo do financiamento. Mas nos custos estruturais é inevitável, uma vez que o seguro reduzirá enormemente os riscos de execução das obras.
A seguradora passa a ser um player relevante à mesa. O segmento está pronto?
Temos hoje o mercado financeiro mais transparente e mais bem supervisionado do mundo. Mas o mercado de seguros ainda está muito atrás. Décadas atrás. E sem um mercado de seguro moderno e inovador não teremos financiamento privado para a infraestrutura. Existem hoje, digamos, cinco grandes seguradoras de garantia no País. E destas somente duas ou três vão ter competência e capacitação técnica para entrar nesse jogo.
E sem elas… sem investimento privado?
Sim. E o subinvestimento em infraestrutura acarreta em baixa competitividade. Comparado a outros países em desenvolvimento ou emergentes, temos a pior situação. Do total de rodovias, apenas 13,5% são pavimentadas. Das ferrovias, apenas um terço está em operação comercial. E dos mais de 41 mil quilômetros de hidrovias, apenas 53% são economicamente navegáveis.
O que é preciso acontecer para essa nova chance não ser desperdiçada?
A gente vive um cenário de oportunidades. Mas a lição de casa do ecossistema inteiro ainda está no começo. Minha ambição é sensibilizar as pessoas chave dentro do governo e de alguma maneira dizer, ‘olha, tem aqui um bloqueador que eu preciso ajudar a desbloquear’. O mercado privado não será capaz de fazer frente à enorme demanda do novo PAC. Esse nível de investimento só será alcançado se houver uma revolução no mundo de seguros e resseguros e uma interconexão com os mercados financeiro e de capitais.