Insegurança jurídica: como tirar o Brasil desse atoleiro
Garantir segurança jurídica é fundamental para trazer mais investimentos em projetos de infraestrutura no País. Para especialistas, é necessário estabelecer mecanismos que assegurem a manutenção das obras sem mudanças no meio do contrato
Por Sérgio Vieira
Em outubro de 2019, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, deixou evidente a falta de diálogo com a iniciativa privada e determinou a destruição de praças de pedágio da concessionária que administrava a movimentada Linha Amarela havia duas décadas, rompendo unilateralmente o contrato em vigor. A ação desastrosa só poderia resultar em disputa nos tribunais. No dia seguinte, a Justiça suspendeu a decisão de Crivella e determinou a retomada da cobrança do serviço, além de multa para o poder público em caso de descumprimento.
O exemplo extremo mostra como não deve ser a relação entre o poder público e empresas responsáveis por obras de infraestrutura no Brasil. E como uma mudança de caminho no meio do percurso, ou até mesmo a falta de regras estabelecidas anteriormente, pode afetar a credibilidade do País na busca por recursos em grandes projetos.
“Temos evoluções importantes e isso precisa ser celebrado. mas é preciso discutir pontos, para que possam ser superados.”
Venilton Tadini, presidente da Abdib
Antes da obra
O clima de insegurança jurídica é um pesadelo para grupos que pretendem participar de grandes licitações de obras como de aeroportos, rodovias, saneamento básico, entre outras importantes intervenções. E garantir essa segurança talvez seja um dos principais desafios da administração pública, justamente para assegurar o aporte do investidor e a consequente geração de empregos.
Mas também há o outro lado da moeda, quando a empreiteira não consegue arcar com o que se comprometeu e simplesmente abandona a obra, criando esqueletos vergonhosos de concreto em diversas cidades do Brasil e evidenciando o desperdício do dinheiro público. Isso passa, necessariamente, por uma boa gestão do contrato assinado.
Para o advogado Cássio Gama Amaral, sócio da Machado Meyer Advogados, antes da discussão em torno da segurança jurídica propriamente dita, é necessário dar um passo atrás para criar mecanismos de estruturas governamentais para elaboração de estudos de projetos executivos. “Por conta dessa ausência de planejamento, muitas obras são mal planejadas e mal executadas. Antes do contrato, a licitação precisa ser bem-feita”, disse.
Amaral acredita que a Nova Lei de Licitações, que entra em vigor em janeiro, pode mudar um pouco essa realidade, já que ela traz caminhos para garantir maior eficiência ao processo licitatório. “O que a gente espera é que esse seja um marco importante para a postura do Estado nas licitações.”
Nesse sentido, a garantia de um seguro para a obra de infraestrutura é um importante caminho para que os projetos não sejam interrompidos. O novo fomato da legislação assegura a cláusula de step-in, que exige que a seguradora entre e performe o projeto, em benefício do Estado, em caso de descumprimento do tomador do seguro contratado, no caso as empreiteiras.
“A seguradora faz um importante filtro financeiro e operacional do contrato, para saber se, na prática, esse projeto pode ser executado. Essa é uma forma de reduzir a ineficiência dessas grandes obras”, afirmou o advogado. Esse mecanismo passará a funcionar na virada do ano.
Outra solução para garantir que a obra possa ser efetivamente concluída está sendo discutida em Brasília: a criação de um instrumento financeiro chamado debêntures de infraestrutura, que seriam emitidos pelas empreiteiras para financiar as obras das quais pretendem participar.
“Acho fundamental que se tenha a percepção de que crescimento econômico consistente vem com investimentos em infraestrutura.”
Arnaldo Jardim, deputado federal
Relator de grupo de trabalho na Câmara do Marco das Concessões e do Projeto de Lei 2.646/20 (que trata das debêntures), o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania) disse que as debêntures incentivadas já existem, mas apenas para pessoas físicas. “Com essa nova lei, os compradores podem ser fundos institucionais, que têm mais capacidade de investimentos. Isso vai ampliar de forma extraordinária os recursos na infraestrutura”, afirmou.
O parlamentar comemora o emprenho do governo para o aperfeiçoamento regulatório das obras do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como mais agilidade no licenciamento ambiental, que deve ser votado ainda neste ano.
“Acho fundamental que se tenha a percepção de que crescimento econômico consistente vem com investimentos em infraestrutura”, disse Jardim. “As políticas sociais compensatórias ou emergenciais socorrem as pessoas, mas não garantem depois a permanência do crescimento do País.”
“A seguradora faz um importante filtro financeiro e operacional do contrato, para saber se, na prática, o projeto pode ser executado”
Cássio gama Amaral, sócio da machado Meyer advogados
Mudança
Presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini entende que tão prejudicial quanto não ter regulação clara sobre alguma atividade é a mudança de regra no meio do caminho.
Ele cita o caso da Medida Provisória 1.154, que transferiria poderes das agências regulatórios para conselhos que seriam criados pelo Executivo. A medida foi vetada. “Esse seria um tipo de insegurança. Seria o equivalente a dizer que para aprovar as regras do setor financeiro, hoje feitas pelo Banco Central, seria necessário passar por um conselho”, disse Tadini.
“Também há casos de municípios que decidem cobrar Imposto Predial Territorial e Urbano (IPTU) em toda a área em que passa uma rodovia ou ferrovia. Temos trabalhado muito para que a Advocacia Geral da União (AGU) entre fortemente nesse tema. O que não dá é para passar trator em cima de pedágio”, afirmou Tadini.
Ainda assim, ele entende que o Brasil vem avançando no assunto, como a aprovação do Marco do Saneamento, das agências reguladoras, do setor do gás, que dão solidez a investidores que buscam atrair recursos em obras estruturantes. “Temos evoluções importantes e isso precisa ser celebrado. Mas é necessário discutir mais detalhadamente alguns pontos, para que possam ser superados.”
Ainda que tudo funcione como um relógio suíço — licitação e contratos bem executados —, será necessário que os canais de arbitragem possam ser mais ágeis, para dar vazão às demandas judiciais sem que isso resulte em paralisações quase que eternas de obras no País.
O advogado Amaral diz que o Brasil ainda patina na eficiência de tribunais. “Estamos muito atrás. Os processos se eternizam para discutir pontos de contratos. Desmobilizar uma obra e mobilizar novamente gera um impacto enorme, inclusive social”, afirmou. “Por isso é importante buscar métodos alternativos para solução de conflitos.”
O fato é que garantir esse equilíbrio no jogo ainda é algo distante. É importante que a estrada esteja, de fato, melhor pavimentada no caminho da segurança jurídica. Para o bem de todos.