Lições sobre o impasse do teto da dívida americana

Crédito: Divulgação

Vitoria Saddi: "Mesmo os EUA, que têm o poder de emitir dólar, devem tomar cuidado com o crescimento sem fim de sua dívida" (Crédito: Divulgação)

Por Vitoria Saddi

Orecente impasse sobre o teto da dívida americana e a resistência do Congresso em alterar tal limite merece uma análise mais detalhada. Muito embora o governo Joe Biden costurasse o acordo para suspender o teto da dívida até janeiro de 2025, após as eleições presidenciais americanas, o problema está longe do fim. Nos Estados Unidos, o teto da dívida (US$ 31,4 trilhões) é um limite fixado pelo Congresso. No mês de dezembro anterior, o orçamento é aprovado e, na medida em que é realizado, o volume de gastos chega mais próximo ao teto. Assim, já se sabia desde janeiro de 2023 que tal limite seria atingido. O teto é o total que inclui a dívida em poder do público e contas entre governos. Como as despesas do orçamento corrente são votadas em separado do teto da dívida, tal limite não restringe de modo algum os déficits públicos correntes e prospectivos. Somente impede (de forma bastante tosca e temporária) o Tesouro americano de pagar pelos seus gastos e outras obrigações financeiras, e apenas após o limite ter sido atingido. Há também um impasse legal: juristas argumentam que nem tal teto pode levar os EUA a deixarem de pagar os juros dos títulos americanos.

A penúltima vez que tal impasse ocorreu foi em 2011 e induziu as agências de risco a rebaixarem os títulos ‘risk free’ dos EUA. Isso, por sua vez, levou a uma queda das bolsas. A recuperação que estava ocorrendo na economia americana, recém-saída da crise financeira de 2008, foi interrompida com queda do PIB e retração econômica. Na exposição de motivos para o ‘quantitative easing 3’, o então presidente do Fed, Ben Bernanke, enfatizou os efeitos negativos do impasse causado pelo limite da dívida. Quando o limite de gastos é atingido sem o Congresso autorizar o aumento, o Tesouro americano deve usar ‘medidas extraordinárias’ para financiar o governo, ainda que de modo temporário. De toda forma, nunca houve na história americana um default da dívida interna.

“Se o dólar ganhou destaque mundial e a libra esterlina perdeu, após a Segunda Guerra Mundial, isso se deve em grande parte à administração responsável da dívida pública americana.”

Na verdade, o episódio de 2011 deixou claro que a mera ameaça de default já causou ruído suficiente nos mercados e pânico no sistema financeiro. Até 1917, os EUA não tinham limite de dívida. O Congresso autorizava de modo discricionário empréstimos ou autorizava o Tesouro a emitir instrumentos de dívida. Os EUA criaram um limite em 1917, o Second Liberty Bond Act. Em 1939, o Congresso instituiu o limite no total da dívida. O que a história americana mostra a eles mesmo e a qualquer outra economia do planeta é que não há fórmulas mágicas. Sobretudo no tocante à dívida pública. O teto serve como um alerta para evidenciar o valor total que a dívida interna atingiu nos EUA. Na comparação dívida/PIB, os EUA atingiram 123%. O Fed é o principal detentor de títulos públicos americanos, respondendo por quase 20% do total. Entre países, os demais principais detentores dos títulos são Japão, China e Reino Unido. Os três somados respondem por 8,2% do total de títulos americanos.

Mesmo os EUA, que têm o poder de emitir dólar, devem tomar cuidado com o crescimento sem fim de sua dívida. À medida que ela cresce mais do que o PIB é possível que haja aumento da percepção de risco dos títulos americanos. E caso o governo não proponha algum plano de contenção de gastos, o próximo presidente americano, a ser eleito em 2024, terá a árdua tarefa de promover cortes de gastos e eventual alta de impostos para evitar alta contínua do limite do teto da dívida. O dólar emergiu como reserva universal de valor após a Segunda Guerra. A redução do poder econômico e político da Europa ocorreu de modo gradual. Ou seja, se a libra esterlina perdeu destaque no século passado, e o dólar ganhou, isso se deve em grande parte à administração responsável da dívida pública americana. Esse é o grande recado. A Washington cabe torcer para que isso continue num futuro próximo. Do lado oposto, Pequim está de olho.

  • Vitoria Saddi é PhD em Economia pela University of Southern California, é estrategista da SM Futures. Atuou como economista-chefe da Roudini Global, do Citibank, da Queluz Asset e do Salomon Brothers