Gasto público: saiba por que é preciso cortar na carne
Judiciário, Executivo e Legislativo têm como zerar o déficit fiscal. Desde que eliminem as próprias despesas, incluindo privilégios. Alguém se habilita?
Por Paula Cristina
RESUMO
• Despesa total do governo federal é de R$ 5,5 trilhões
• Reforma administrativa é urgente: gastos com servidores é a segunda maior despesa do Executivo, atrás apenas da Previdência
• Na previdência, se cortar fraudes e pagamentos indevidos, despesa pode diminuir R$ 15 bilhões em 10 anos
• Poder legislativo precisa enxugar gastos: Brasil tem o segundo Congresso mais caro, atrás apenas do dos Estados Unidos
• Poder Judiciário é o que mais gasta recursos públicos entre todos os países da América e da Europa
Quando pensamos em gastos exorbitantes de dinheiro público, o Poder Executivo surge como o principal responsável pelo desequilíbrio nas contas públicas. E de fato ele é o maior gastador. O dispêndio total previsto para este ano, sem contar o pagamento de juros da dívida, é de R$ 2,2 trilhões. Nesse número entram as despesas obrigatórias (que incluem salários dos servidores e gastos previdenciários) mais as chamadas despesas discricionárias (pagamentos de precatórios e emendas parlamentares, além de investimentos, como o PAC). Para chegar à despesa total do governo federal, no entanto, é preciso incluir os cerca de R$ 900 bilhões destinados exclusivamente às estatais e autarquias (entre salários e investimentos) e outros R$ 2,4 trilhões de pagamento de juros da dívida. No bottom line, a conta chega a R$ 5,5 trilhões.
• Tradicionalmente, o Poder Executivo só realiza cortes dentro das despesas discricionárias, que em 2024 somam R$ 225,8 bilhões, uma ínfima parte de 11% das despesas totais sem o pagamento de juros da dívida.
• Mas se o olhar for expandido, há mais dinheiro na mesa a se economizar. E um desses caminhos seria cortar e revisar benefícios no Judiciário, no Legislativo e no próprio Executivo, o que garante uma redução de gastos de R$ 23,8 bilhões por ano.
• Se nessa conta forem acrescentados os efeitos da Reforma Administrativa, da Revisão Previdenciária e da união dos gastos sociais, outros R$ 665 bilhões seriam poupados em uma década.
Para Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, há algum nível de descaso de todos os Poderes com a quantidade e a qualidade do que gastam.“Falta mais ênfase no corte. Há muito ajuste voltado para a arrecadação, e esse desequilíbrio precisa ser corrigido”, disse Fraga.
Já o secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento, Sergio Firpo, diz que uma análise profunda sobre o tema está em curso desde 2023, e os resultados serão apresentados em abril, na proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025. Segundo ele, o estudo contempla excessos e gastos pouco eficientes.
Enquanto eles fazem contas, a DINHEIRO preparou uma série de medidas que podem facilitar o processo de contenção de gastos — sem penalizar o mais pobre ou espremer os mais ricos.
Executivo
O elefante na sala
Conhecida como a mãe das reformas, a revisão do tamanho do Estado, ou Reforma Administrativa, não é uma questão de ideologia política, mas de coerência com os tempos em que vivemos. Neste ano, os gastos com servidores do governo federal estão estimados em R$ 380 bilhões, ou 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB). É a segunda maior despesa primária do governo, perdendo apenas para a Previdência Social (R$ 913 bilhões, 8% do PIB).
O ex-ministro da Economia Paulo Guedes até tentou emplacar uma Reforma Administrativa no governo Jair Bolsonaro, mas sem sucesso — por boicote do próprio governo da época. O texto basicamente revia as formas de contratos e diminuía a estabilidade do emprego.
No começo do governo Lula, foi totalmente descartado. O atual advogado-geral da União, Jorge Messias, chamou a proposta, no final de 2023, de “lixo”. Em um evento organizado pelo Ministério da Gestão, Messias afirmou que a discussão de reforma envolve rever quais são as necessidades da população e atualizar o Estado para os moldes atuais. “Podemos entregar mais e melhor à população, e com isso aumentar a eficiência e diminuir custos”, disse. Lindo. O problema? Não deu mais detalhes.
Para o economista Felipe Salto, da consultoria Warren Rena, uma saída seria a revisão de políticas de indexação e correção automática de salários e remunerações. “Nisso, a Reforma Administrativa poderia ajudar, eventualmente.” Nos cálculos de Salto, poderia diminuir o custo da máquina pública em mais de R$ 150 bilhões em dez anos.
Previdência
Falar de Previdência parece um pouco démodé, mas vamos ter de falar sobre ela de novo. Ao cruzar as projeções de envelhecimento da população pelo INSS e sua arrecadação, o problema é visível. Em 2020 o déficit previdenciário no Brasil foi de R$ 160 bilhões. Em 2021 saltou para R$ 190 bilhões. Fechou 2022 em R$ 250 bilhões. A expectativa é que o número dobre até 2060 e quadruplique até 2100. É preciso agora aliar tecnologia nessa conta. Em vez de reduzir os valores pagos, o governo precisa investir em um sistema inteligente de liberação e autenticação do benefício.
Isso poderia ajudar a mudar um dado alarmante do TCU. Em 2021 foram pagos R$ 86 milhões em aposentadorias indevidas, R$ 27 milhões a segurados falecidos, R$ 52,6 milhões gastos com benefícios previdenciários acima do teto e R$ 6 milhões em fraudes. O tribunal aponta, inclusive, que esse número todo deve ter dobrado durante a pandemia. E, resolvê-lo, pode diminuir a despesa previdenciária em R$ 15 bilhões em dez anos.
Gastos sociais
Além da Previdência há políticas de proteção social. Calma, calma, ninguém aqui quer acabar com o Bolsa Família, mas usar inteligência nessa aplicação. Um estudo do economista Gabriel Leal de Barros, da Ryo Asset, aponta a necessidade de promover uma fusão de políticas sociais diante da execução fracionada de diversos programas como o Auxílio Brasil, Auxílio Gás, Auxílio Reclusão, Farmácia Popular, Salário Maternidade, Salário Família, Benefício de Proteção Continuada… “A fusão de políticas sociais é algo imperativo, já que a ineficiência da gestão dessas políticas é enorme e é comum ter beneficiários recebendo dois, três, quatro e até cinco benefícios de forma cumulativa”, disse Barros.
Pelos seus cálculos, a integração e o redesenho dos programas sociais podem entregar economia fiscal de quase R$ 200 bilhões em dez anos. O Banco Mundial concorda. “Vários benefícios pecuniários que deveriam ser direcionados aos trabalhadores pobres estão, na prática, beneficiando famílias com rendas mais altas”, relatou o banco em um reporte de agosto de 2023.
Abono Salarial
Outra solução seria rever o abono salarial, benefício que assegura o valor de até um salário mínimo anual aos trabalhadores que receberam em média até dois salários mínimos de remuneração mensal durante pelo menos 30 dias no ano, e que estejam cadastrados no PIS ou no Pasep há pelo menos cinco anos. Para Rafael Medici, professor de estudos econômicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o efeito do abono não é mais social. “Ele não combate o desemprego, pois quem recebe está empregado. Não combate a miséria, porque quem recebe não está entre os 20% mais pobres. E não ajuda na informalidade, porque quem recebe o benefício já está no mercado formal.”
O pagamento do abono salarial está estimado em R$ 28,1 bilhões para o ano de 2024. Extinto o benefício, a economia tende a superar R$ 300 bilhões em dez anos — pois o valor é corrigido anualmente. Para ser encerrado, teria de ser alterada a Constituição.
Saúde e Educação
A educação e a saúde pública poderiam ser melhores? Sim. Isso significa que o governo precisa investir mais nela? Não necessariamente. Em 2023, uma solução de alunos de gestão de políticas públicas da Universidade de Brasília foi apresentada à ONU. Os estudantes mostraram por meio do estudo intitulado A Realidade da Saúde Pública e Educação Brasileira que o uso de inteligência artificial na hora de distribuir recursos para os municípios teria o poder de melhorar em 3 pontos o IDH brasileiro e, pasmem, reduzir em 18% o total do gasto com saúde e 22% com educação ao ano, ou cerca de R$ 5 bilhões ao ano.
Para isso, no entanto, o governo teria de avançar com um projeto para desindexar a correção dos valores destinados a esses setores, que têm seu aumento anual previsto em Lei.
R$ 5,5 trilhões
é o valor das despesas do Brasil em 2024; do montante, R$ 2,2 trilhões, ou 40%, são usados para custear a máquina pública
Legislativo
Dinheiro x controle
Se o Executivo tem muita gordura para queimar, o Legislativo precisa olhar para o próprio umbigo e analisar como contribuir. O Brasil tem o segundo Congresso mais caro, perdendo apenas para o dos Estados Unidos — a maior economia do mundo. Um estudo realizado pelas universidades de Iowa, Universidade do Sul da Califórnia e Universidade de Brasília (UnB) a pedido do Banco Mundial apresentou números preocupantes.
Em 2021 cada um dos 513 deputados e 81 senadores brasileiros custou US$ 5 milhões, ou R$ 24 milhões com a cotação do dia 10 de janeiro. Isso significa que o gasto com cada congressista corresponde a 528 vezes a renda média dos brasileiros. Neste ano, a despesa com pessoal no Congresso será de R$ 13,68 bilhões, ou 0,12% do PIB. Nos EUA, com orçamento de US$ 4,73 bilhões, o custo dos parlamentares representa 0,017% do PIB. Proporcionalmente, o parlamento brasileiro custa 7,5 vezes mais que o americano.
Para explicar esse fenômeno brasileiro, o pesquisador Luciano de Castro, que é professor associado na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, parafraseou o professor Barry Ames, autor do livro The Deadlock of Democracy in Brazil. “A tragédia do sistema político brasileiro não é que ele beneficie as elites, e sim que ele beneficia a si próprio.”
• Do total de gastos do Legislativo brasileiro este ano, salários e benefícios custarão R$ 6,43 bilhões.
• Aposentadorias e pensões, outros R$ 5,5 bilhões.
• Além de elevada, a folha de pagamento do Legislativo federal é extensa, somando mais de 24 mil pessoas, a maior parte deles na Câmara (14.778 servidores).
Para Victor Gonzaga Gurgel, pesquisador da Universidade Federal do ABC, a escalada dos gastos acontece sempre que a pessoa que usufrui é a mesma que autoriza o aumento. “Não há qualquer tipo de autonomia real dos outros Poderes para frear os aumentos, até porque eles também se beneficiam da autorregulação.”
Uma solução seria o modelo adotado em alguns países da Europa, como Irlanda e Suíça, onde os orçamentos são cruzados. Assim, cada Poder desenha seu próprio orçamento, mas precisa passar por auditoria nas outras Casas. Um estudo feito pelo Instituto Millenium calculou que reduzir o uso do auxílio moradia e as férias, de 60 para 30 dias, traria economia de R$ 2,3 bilhões aos nossos bolsos ao ano.
O TCU também está atento a essa questão. Apenas no ano passado, o Congresso gastou ao menos R$ 258,6 milhões com o pagamento de:
• despesas dos parlamentares com alimentação,
• hospedagem,
• aluguel de escritório e veículos,
• combustíveis e lubrificantes,
• telefone,
• passagens aéreas, entre outras.
A verba varia de acordo com o estado de origem do parlamentar. No Senado, vai de R$ 21.045,20, para senadores do Distrito Federal e de Goiás, a R$ 44.276,60, para representantes do Amazonas. Na Câmara, o benefício é ainda mais generoso: deputados da capital federal têm direito a R$ 30.788,66 e os de Roraima a R$ 45.612,53.
Na avaliação do TCU, a atual estrutura das duas casas legislativas não é capaz de impedir uso indevido do dinheiro público. “A realidade é que existem indícios de utilizações irregulares, equivocadas ou ineficientes dos recursos disponibilizados, e que os meios atuais de controle e fiscalização não estão sendo eficientes para mitigar o eventual abuso ou mau uso das verbas por parte de determinados parlamentares”, afirmou o relatório do tribunal.
A estimativa é que cada Casa poderia reduzir até um R$ 1 bilhão ao ano com mais disciplina e controle dos gastos. “É dinheiro de todos nós utilizado sem qualquer garantia de que os princípios basilares da administração pública estão sendo respeitados.”
Judiciário
Caixa preta (e cega)
Não é possível avaliar os problemas do custeio brasileiro sem olhar também para o Judiciário. Responsável por um orçamento de R$ 73,08 bilhões ao ano, o Poder Judiciário, em seu conjunto, converteu-se em uma grande estrutura geradora de privilégios para poucos, com baixa preocupação social, nenhuma participação democrática, transparência ou controle da sociedade.
Dos Três Poderes, o Judiciário também é o mais difícil quanto a acessar dados públicos, o que torna baixa — ou nula — a fiscalização do andamento e do destino dos recursos. Pouca gente sabe, por exemplo, que o Judiciário brasileiro é um dos mais caros do mundo. É o que mais gasta recursos públicos entre todos os países da América e da Europa.
Segundo um estudo da FGV-Rio, em pareceria com o Banco Mundial, o Brasil destina 0,7% do PIB para a manutenção de sua Justiça. Na Alemanha é menos da metade: 0,32%. Na Itália 0,19%. Nos EUA 0,14%. O número não seria tão ruim se a Justiça funcionasse melhor.
No Judiciário os benefícios também se acumulam. Auxílio-moradia, auxílio-paletó, auxílio-livro, recursos esses que não estão sujeitos ao IR e à contribuição previdenciária. E essa é apenas a ponta do iceberg.
Em São Paulo, por exemplo, um estudo do Ministério Público de 2021 revelou que a média de rendimento mensal dos juízes e desembargadores era de R$ 40.853 (enquanto o teto era R$ 33.763). Em cargos como procuradores-gerais de Justiça, chefes dos MPs esse valor podia chegar R$ 53.971. À época, das 54 esferas judiciais pesquisadas no estado, 50 furavam o teto. E isso é ilegal? Não. A questão é a moralidade. Usufruir do benefício é constitucional, mas a recondução dele para transformar em parte do provento mensal é uma subversão do propósito. Na ponta do lápis, seria possível reduzir, ao ano, cerca de meio milhão de reais de salários pagos acima do teto.
Para o advogado José Marin Gonzáles, procurador aposentado por Minas Gerais, a construção da casta Judiciária é um problema que o Brasil terá de enfrentar, uma hora ou outra. “A solução seria ampliar a lei que estabelece o teto salarial do ente público para que ela fosse mais clara sobre a incorporação de benefícios.”
A taxação dos valores também seria uma solução para redução das perdas, além, claro, do uso da tecnologia para cruzar dados de modo instantâneo e barrar pedidos inapropriados. “Deveria haver um teto de benefícios, a ser usado como o magistrado preferir”, disse Gonzales. Parece claro que todos precisam cortar na própria carne. O que ninguém fez até agora.