Pra que serve Davos?
Edição 2024 do Fórum Econômico Mundial vira saco de gatos e balaio de temas — esvaziado de Lula a Biden
Por Edson Rossi
Do lado dos pesos-pesados, os representantes foram de segunda linha — simbolizados por Antony Blinken (secretário de Estado dos EUA) e Li Qiang (primeiro-ministro chinês). A exceção foi o francês Emmanuel Macron. Do lado de cá do hemisfério, nem isso. Sem Lula & Fernando Haddad, o Brasil mandou três ministros, todos brifados para tratar de questão climática. Mas o tema flopou. Não virou manchete por aqui. Não virou manchete na mídia gringa.
Davos 2024 (15 a 19 de janeiro) é uma boa amostra de que ao tentar falar de tudo pode perder relevância. No Google Trends, que mede o interesse das pessoas por determinado assunto, leva uma surra da COP-28 (que terminou em dezembro). Para cada 100 buscas sobre o evento realizado em Dubai, há o equivalente a 24 ao suíço.
“O Brasil perdeu a oportunidade de ser protagonista em Davos”, afirmou o CEO do Pacto Global da ONU no país, Carlo Pereira. “São 60 chefes de Estado.” Sim. Seis dezenas. Mas de relevante mesmo havia apenas Macron. E ele ignorou qualquer agenda que não fosse a própria. “A Europa deve fazer mais esforços e sermos mais visíveis, aconteça o que acontecer nos Estados Unidos”, afirmou em reportagem da CNBC (EUA), quase apostando na eleição de Donald Trump no fim deste ano.
No caso brasileiro, os principais nomes escalados foram os ministros de Minas e Energia (Alexandre Silveira), Meio Ambiente (Marina Silva) e Saúde (Nísia Trindade). Muito distante do bonde que oficialmente levou 1.337 pessoas à COP-28, em Dubai.
A trinca de ministros teve como tema único a questão climática. A estratégia não estava errada. A agenda de Davos 2024, sob o lema “Reconstruindo a Confiança”, foi dividida em quatro pautas-chave:
• Cooperação Global,
• Crescimento & Empregos,
• Clima & Energia,
• Inteligência Artificial (IA). E esta dominou tudo.
Já na véspera da abertura do evento, no domingo (14), o Fundo Monetário Internacional (FMI) apostou de forma certeira e emplacou seu discurso. A instituição anunciou um estudo em que quase 40% dos empregos em todo o mundo poderão ser afetados pela tecnologia.
“É preciso evitar que a IA alimente ainda mais as tensões sociais”, afirmou Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI. “Estamos à beira de uma revolução tecnológica que poderá impulsionar o crescimento global. No entanto, ela também pode substituir empregos e aprofundar a desigualdade.” Bingo.
Na mesma linha foi o secretário-geral da ONU, António Guterres. Em discurso na quarta-feira (18), apelou aos líderes políticos e empresariais para que priorizem uma estratégia global que lide tanto com a crise climática quanto com a inteligência artificial. “Cada nova interação de IA generativa aumenta o risco de consequências indesejadas e agrave a desigualdade no mundo”, disse Guterres.
A IA foi praticamente um consenso temático. Pelo lado institucional (FMI e ONU). E igualmente pelo lado empresarial. Na terça-feira (16), Satya Nadella, CEO da empresa com mais propriedade para falar de IA, a Microsoft — principal investidora da OpenAI — já havia apontado para a ferida. Segundo ele, será desejável uma abordagem regulatória global para a IA. “Porque estamos agora no ponto em que desafios globais exigem normas e padrões globais”, disse em conversa com o presidente e criador do Fórum, o alemão Klaus Schwab.
ROUBO
Quem elevou o tom foi o cofundador e CEO da Salesforce, Marc Benioff. À Bloomberg, ele disse que as startups de IA estão usando dados “roubados” para desenvolver seus modelos de linguagem. “Essas empresas deveriam padronizar os pagamentos aos meios de comunicação e criadores de conteúdo para compensá-los”, afirmou.
A declaração repete uma feita em setembro, durante a conferência anual da Salesforce. Benioff tem duplo interesse. Pelo lado da tecnologia, mas também por ser dono desde 2018 de um dos mais tradicionais veículos de comunicação dos Estados Unidos, a centenária revista Time.
O alvo estava implícito, a OpenAI, que tem à frente o principal nome do planeta quando se trata de IA: Sam Altman. A startup foi processada no fim do ano pelo The New York Times (NYT), sob a acusação de violar direitos autorais ao usar seus conteúdos para treinar a IA.
Altman se esquivou. Disse que ficou “surpreso” e achou “estranho” o processo, já que a OpenAI estava, segundo ele, em “negociações produtivas” com o grupo de mídia. No processo, o NYT mostrou exemplos em que o ChatGPT divulgou versões quase idênticas de conteúdos do jornal. Nesse imbróglio, Benioff foi novamente preciso sobre o potencial de estrago da IA. “Vimos a tecnologia dar muito errado e dar em Hiroshima. Não queremos ver uma ‘IA Hiroshima’ ”, disse durante um painel em Davos. Mais que na agenda climática, foi no campo da inteligência artificial que o tempo esquentou.